domingo, 31 de maio de 2020

oitavo andar

Da varanda enxergo o mundo.
Miro para baixo e
vejo a chuva castigar
as ruas que se enchem,
e os postes que parecem apagar.

É noite, mas posso ver
o mundo desde o oitavo andar.
E, já numa altura dessas,
Esqueço de para cima enxergar.

O céu está nublado,
mas vai abrir.
O céu comporta a noite,
mas o sol não deixa de existir.

Como não olho para ele,
seguirei espiando da varanda
os mesmos postes, as mesmas ruas,
o mesmo mundo,
enquanto espero a chuva voltar.

domingo, 22 de julho de 2018

minha sorte

Mentem que a sorte é acaso
Ou que o acaso é senhor seu.
Não vêem que temos prazo
Inadiável para termos o seu e o meu.
Que a sorte é também uma escolha
Urgente para ser aproveitada,
E não compreendida.

sábado, 10 de dezembro de 2016

A grande história de M.

M. viveu em uma cidade ribeirinha nem pequena, nem grande. Em sua infância, corria à beira daquele frondoso rio, contemplado de frente pelas casas dos ricos e pelas praças da cidade, dele separadas apenas por uma avenida. Na maior destas praças, cercada por árvores, M. percebia ao voltar da escola, havia sempre um velho sentado, apoiado em sua bengala e olhando além do rio, com a expressão de quem espera ver o sol fazer algo além de se pôr. M. estranhava: sentar àquele banco e lá estar ao fim de cada dia era um dever religioso para o velho.
Então M. cresceu com sua cidade, cujas belas casas tornaram-se prédios que pelas manhãs ensombreavam o rio e pelas tardes postavam-se ao lado do velho para aguardar o sol partir. M. tudo observava com interesse, mas sempre lhe faltava coragem para caminhar até aquele banco e ver o que apenas o velho via. E os dias passaram, por vezes ligeiros, vazios, e por vezes eternos, brilhantes – mas passavam, pois o tempo é inevitável como o próprio pôr-do-sol.
E M. passou a juventude longe da cidade natal, porque inevitavelmente teve de estudar fora, na capital, onde escolheu sua profissão, casou-se com uma moça gentil, criou seus filhos e entre seus lamentos havia o de que a tolice da juventude o impedira de finalmente testemunhar o que via aquele velho. Após isso, o sol completou muitos e muitos arcos até chegar o triste dia em que a cama de M. voltou a ter apenas um ocupante.
Passado o luto, decidiu, sob os protestos dos filhos já crescidos e estabelecidos, voltar à cidade em que sempre dormiu só. Após chegar, em sua primeira caminhada pelas ruas há muito conhecidas, viu que o lugar não era o mesmo: os automóveis, os barulhos, as pichações nos muros e os prédios cresceram e multiplicaram-se. Mas a grande praça e o rio permaneciam lá, testemunhas de M. e de sua terra.
E foi durante esse mesmo passeio que M. não acreditou em seus olhos: enquanto andava à beira do rio, viu o mesmo velho, com a mesma bengala, no mesmo banco, sob as mesmas árvores. Só o medo de M. mudara: jubiloso, apressou-se, atravessou a rua conturbada tão depressa quanto suas trêmulas pernas deixaram, e, quando já estava perto da praça, dois carros colidiram com violência suficiente para lhe chamar a atenção por alguns segundos.
Seu grande choque, porém, foi perceber que aqueles instantes de curiosidade o fizeram perder o velho de vista – no banco agora estava apenas a bengala. Não perderia a viagem; agora mais tranqüilamente, aproximou-se do banco, apoiou-se na bengala, sentou e, após descansar alguns instantes, olhou à frente para contemplar a vista. E viu o grande sol laranja pincelado por nuvens negras pintando de amarelo o azul-escuro do rio. Aquele pôr-do-sol não era tão belo quanto outros que presenciara, mas M. foi inundado de satisfação por finalmente compreender o que o velho sentia, pois viu com os seus olhos.
A partir de então, todos os dias M. ia à praça para devolver a bengala ao velho, que nunca voltou a aparecer. Isso não o incomodou, mas lhe causava um surpreendente contentamento. E assim foi até o último anoitecer, em que M. rapidamente levantou e foi para casa, sorrindo.

domingo, 7 de junho de 2015

o menino no shopping

Matias não sabia se era sortudo ou azarado. Órfão de mãe e abandonado pelo pai, viveu na rua até encontrar o Sr. Raul, homem de idade e vigia de um shopping center da imensa cidade de Nunci, numa noite escura de quinta-feira. Naquele dia, a cidade estava vazia em decorrência das comemorações pelo carnaval, que provocava êxodo massivo e dava a oportunidade a moleques de catorze anos como Matias perambularem pela cidade à procura de uma esmola ou uma alma gentil.
Quando a noite iniciava, Matias teve azar: enquanto sentava e olhava para o céu nublado, um carro passou por uma poça d’água vizinha e o ensopou. Já encharcado, jogou mais água em sua roupa, pois chorou incessantemente. Havia fugido do orfanato há quase três meses e agora estava magro como um cão faminto. Não se arrependia, pois era maltratado na instituição, nunca gostou do ambiente e se dizia que dali não saía sujeito que se preze. Só sentia falta da comida na mesa.
Nesse momento, o Sr. Raul chegou ao seu lado. Tinha mais de 70 anos e uma aparência condizente com os anos vividos, mas se movimentava com grande agilidade e força. Falou com o garoto.
-Meu querido, por que está chorando?
Matias não respondeu.
-Você está bem magro, deve estar com fome. Venha comigo pra eu te dar um sanduíche. – O velho sentiu a relutância do menino. – Tudo bem, então. Não quer um hambúrguer? Acho que mais tarde você se arrepende... Até logo!
O Sr. Raul escutou o “Ei!” após cinco passos. Não falaram nada além de um “esse” seguido de um olhar guloso e um “o que é acelga?” até Matias terminar o sanduíche. Já alimentado e confiando no homem menos porque ele o pagou um sanduíche e mais pela forma com que era tratado, o garoto pôde explicar de onde viera, como perdera a mãe, que o pai o abandonara e por que saíra da casa de órfãos. Em vinte minutos, já eram amigos. Foi aí que veio a proposta:
-Olha aqui, menino. Tá vendo aquele prédio ali? – apontou para o imenso shopping. – Eu sou vigia de lá. Toda noite trabalho da meia noite até as oito da manhã. Não posso leva-lo para casa, já crio quatro dos meus netos e minha mulher não aceitaria, mas garanto que você não fica sem teto durante a noite. E, se estiver com fome, sempre posso trazer um lanche. O que me diz?
O menino poderia ter perdido aquela chance por não haver reagido. O Sr. Raul o empurrou e o conduziu até o grande edifício branco. O velho mandou Matias ficar perto de uma grade, afastou-se alguns metros e passou muito tempo gesticulando e falando com seus colegas vigias, aparentemente os convencendo que o menino era inofensivo. Sob muita relutância, aceitaram a presença do garoto, desde que sob sua supervisão em tempo integral.
Matias não sabia que algum teto poderia ser tão alto e que tantas cores conviveriam com letras, desenhos, cartazes e placas dos formatos mais diversos. O silêncio do lugar lhe trazia uma paz que talvez nunca havia sentido até então; o eco causado por um pequeno passo fazia-lhe imaginar o barulho que predominava durante o dia, quando centenas ou milhares de pés sapateavam pelo chão, com um rumo certo ou apenas vagando em busca de um caminho ou, simplesmente, de um sorvete gelado.
A cada semana cujas noites Matias passava no shopping, crescia sua curiosidade sobre o gosto dos sorvetes. Foi aí que ele decidiu fazer uns bicos no centro da cidade durante o dia para, finalmente, poder comprar durante o dia uma daquelas maravilhosas casquinhas dos pôsteres: não eram tão grandes e majestosas como esperava, mas tinham um gosto divino. Aos poucos e com a ajuda do Sr. Raul, o moleque conseguiu roupas novas, arrumou lugar pra trabalhar passar o dia – um estacionamento de um amigo do Sr. Raul – e vinha engordando. Matias não revelava isso a ninguém, mas tentava dormir durante o dia para poder andar pelo shopping na noite que, para quase todos, era vazia e morta. No absoluto silêncio, Matias conseguia escutar tudo aquilo que pensava. Eram as melhores noites de sua vida.
Fazia mais de dois anos desde que o Sr. Raul e um encharcado Matias se encontraram na rua escura. Tudo ocorria dentro do previsto: agora matriculado numa escola, o garoto auxiliava no estacionamento durante a tarde e seguia religiosamente para o shopping às 10 da noite. Certa vez, os vigias não o deixaram entrar. Perguntou o motivo e lhe riram na cara. Dormiu na rua aquele dia.
A sequência se repetiu por mais duas noites, quando o garoto percebeu que não sabia sequer onde o Sr. Raul morava ou qualquer forma de conseguir notícias do amigo. Os vigias do shopping, que nunca gostaram da sua presença por lá, já estavam mais agressivos: não respondiam nada sobre o velho e proferiam ameaças caso houvesse insistência. O que se passou com o Sr. Raul? Por que ele nunca lhe dissera sequer onde morava? Matias se enfurecia até que o pensamento da possível morte do velho passava pela sua cabeça e lhe amolecia os nervos. Será que tinha sido novamente abandonado?
Preferiu pensar que não. Decidiu conforme certa vez já havia pensado no meio daquele salão de teto alto: só a morte o impediria de ver novamente o Sr. Raul, seja ela a morte do velho ou a própria, que extinguiria seus pensamentos e inúmeras imagens daquele senhor de andar rápido e alegre. Naquele momento, voltou a questionar se tinha sorte ou azar ao perder o amigo daquele jeito. Decidiu, então, ir à lanchonete de dois anos e pouco atrás, pediu novamente o hambúrguer com acelga, o devorou e saiu em busca de um teto para a noite. Matias escolheu ter sorte.


(Texto de julho de 2014)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Lembrete

Não vivo em tempos sombrios: há acontecimentos, pessoas e histórias terríveis ao meu redor, mas, igualmente, existe com quem vale a pena passar uma tarde, uma noite, o dia, a semana e, por que não, a vida. Há belas histórias que, futuramente, serão os exemplos perdidos de uma época gloriosa. Cabe a mim, humildemente, escrever uma delas. Enquanto existirem pessoas, haverá (e há!) quem traga luz ao próprio tempo. Por mais escuro que o meu seja, ou possa parecer, por vezes uma tarde agradável pode acender a chama que acostuma meus olhos à luz, fazendo renovar-se a esperança de, um dia, compreender por que iluminar apenas o que posso ver é vão como uma fogueira cintilante numa caverna de cegos.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

as três estátuas


A voz no beco

Tinham quinze anos quando aconteceu. Carlos, José e Arnaldo estavam sentados numa praça da cidade, falando sobre os assuntos que qualquer menino de quinze anos conversa – futebol, carro, mulher e histórias inventadas ou mal contadas sobre esses temas. Olharam, os três ao mesmo tempo, para um beco escuro de uma rua sem saída ao lado deles. De lá vinha uma voz suave e, contraditoriamente, amedrontadora:
-José, preste atenção.
José não só prestou atenção como começou a tremer.
-Carlos e Arnaldo, vocês também.
Arnaldo pensou até em correr e gritar pela mãe – era o que morava mais próximo dali –, mas foi contido por Carlos:
-Psiu, fica quieto.
E ficaram. A voz prosseguiu, agora parecendo que vinha de trás deles:
-Na rua da qual veio minha voz, encontrarão três pequenas estátuas. Elas poderão ser muito úteis a vocês: quando bem entenderem, basta quebrá-las que voltarão no tempo a um certo momento desejado. Duvidam? Então por que minha voz agora vem do céu?
E vinha.
-Continuam duvidando? Então por que vão viver isso tudo de novo?
E lá estavam eles falando da nova namorada daquele jogador quando, subitamente, param de falar e escutam, da mesma rua, uma voz capaz de corroer por dentro uma alma:
-José, preste atenção.

***
José

José tinha dezenove anos quando começou a namorar Luiza, uma menina bem bonitinha em quem esteve de olho desde os dezesseis. Todos os amigos do casal já perguntavam quando seria o casório a partir do terceiro ano do relacionamento. Amigos só de José, entretanto, alertavam-lhe sobre a juventude perdida:
-Zé, tomara que você goste mesmo dessa garota, porque não faz ideia do que tá perdendo...
Mas José tinha uma carta na manga: a estatueta recebida naquela noite sombria. Sempre se perguntava quando a usaria e, ao mesmo tempo, sentia-se seguro para fazer o que bem entendesse – ora, o pior que lhe poderia ocorrer seria viver tudo de novo e, se tem gente que reclama que a vida é curta, ele poderia tê-la duas vezes...
No seu sétimo ano de namoro, então, briga pela trecentésima (sem usar hipérbole alguma) vez  com Luiza. Uma ciumeira sem fim acabou com o namoro. José chega em casa chorando e, agarrado ao copo do uísque que ganhara de presente de um amigo que viajara ao exterior, pensou na juventude perdida. A quantas festas não foi, quantos drinques não bebeu, quantas mulheres não beijou... maldita Luiza! Se ele soubesse, nunca teria feito nada a seu respeito! Que perda de tempo... Lembrava-se do mole que a Cláudia da faculdade dava pra ele. Recordava do beijo que a Jéssica, do escritório, tentara lhe roubar durante um churrasco. A cada chance antes perdida, crescia seu ódio por Luiza.
Vai ao baú no qual guardou, carinhosamente, a estátua. Ela repousava, parecida com a estatueta do Oscar e coberta por uma fina camada de poeira, ao lado de alguns troféus de judô conquistados na infância. José não lembrava por que, afinal, tinha deixado o esporte. Antes que pudesse refletir sobre isso, exige-se foco para o que iria fazer. Agarra o pequeno homem, levanta-o com o braço direito e o atira no chão. Queria voltar para o momento no qual chamara Luiza para sair pela primeira vez.
Voltou aos seus dezenove anos. Estava cara a cara com Luiza. Conversou tranquilamente, mas não a convidou para sair e seguiu a vida, sem noção do que fazer e esquecendo-se de tentar descobrir por que ele deixara o judô.
Por fim, a Cláudia da faculdade casou-se precocemente com outro rapaz da turma e a Jéssica do escritório nunca lhe deu bola alguma. José, de fato, aproveitou algumas festas e bebedeiras durante seus anos dourados, dos quais prefere nem lembrar para não se acabar em tristeza e contemplação. Aos vinte e oito anos, casou com Luiza (ela mesma). Foi pai de dois filhos, eternamente traumatizados pela separação dos pais, ocorrida após o flagra presenciado por José ao deparar-se com Luiza  e Cláudia (aquela mesma) na cama.
Dezenove anos depois de jogar fora seus troféus de judô (“Mas pra quê eu quero essas tralhas, mulher? Manda tudo pro lixo!”, gritara para sua segunda e definitiva esposa enquanto se ocupava com temas mais importantes que ele e seu passado – na ocasião, as quartas-de-final da Copa São Paulo de Juniores), morreu sem nunca descobrir por que diabos, afinal, casara com Luiza.

***
Arnaldo

Arnaldo mudou depois do incidente na praça. Se fora o primeiro a pensar em correr para casa após ouvir aquela voz capaz de arranhar as entranhas enquanto causa calafrios em sequência (ele arrepiava-se só em começar a lembrar daquele “José, preste atenção”), passou a encarar os momentos amedrontadores com mais coragem. Ora, se podia voltar no tempo quando bem desejasse, poderia correr riscos e desfrutar da consequente reputação de corajoso e visionário que se configuraria.
E, de fato, Arnaldo tinha uma excelente intuição. Recorrentemente, recebia elogios:
-Mas tu tem um instinto, viu? Benza Deus!
-Arnaldo, depois me passa o número da bruxa que te deu essa bola de cristal que, se essa desgraçada me der uma, eu caso com ela na hora!
Ganhou fama. Tomava posições fortes e convictas, mesmo que nem sempre corretas. A cada erro, ponderava se devia voltar no tempo. “Não”, pensava, “a cada dia sem voltar, é um dia a mais de experiência. Quanto mais tempo passar, mais eu ganho aqui e mais tempo a ganhar eu tenho lá”. Por ser corajoso, de boa intuição e de voz forte, conseguiu um bom emprego já aos 23 anos como corretor de ações. Consolidou-se no mercado, fundou uma escola com seu legado. Muitos anos depois, foi convidado para um cargo executivo em uma grande empresa. Aos quarenta e cinco anos, considerava-se feliz. Rico, bem sucedido, casado com Marta, quem conhecera ainda guriazinha e que se tornou um mulherão – vinte e cinco anos mais nova, mas dane-se: era um mulherão.
Quase todo dia, porém, abria uma pequena porta localizada estrategicamente ao lado do pé direito de quem senta na sua imensa mesa de trabalho. Imaginava o uso que poderia dar à estatueta localizada atrás de alguns livros e que brilhava como se houvesse sido fabricada naquele mesmo dia. Parado, punha a mão no queixo, o cotovelo no braço da cadeira e pensava, sem progressos, no que tinha dado errado na sua vida.
Certa vez, Bentinho, seu filho, pediu um novo videogame. Consultou uma revista do ramo e viu que a única mudança em relação ao anterior, ganhado pelo filho há menos de seis meses, era no design dos botões. Negou o presente de Natal ao filho veementemente:
-Não, esse novo é a mesma coisa.
-Mas papai, o novo... – o filho nem conseguia terminar a frase:
-Não é não, entendeu? O que tem de errado no seu? Acha que ele foi barato? – dizia, firme como achava que deveria ser.
-Não é questão de ter algo de errado no meu, mas é que dava pra ser melhor, pai...
Arnaldo arregalou os olhos instantaneamente. Arrepiou-se como há tempos não fazia. Soltou um largo sorriso: era isso.
-Então, tá, meu filho! Eu compro! - a mudança de feição do pai deixou o menino confuso. Ora, pra quê negar o desejo do garoto se não o veria em muito tempo? Melhor deixá-lo aproveitando alguns minutos de júbilo, pois muito em breve voltaria a não existir.
“Era isso! Bingo!”, pensava Arnaldo enquanto corria para seu escritório, “Não tem nada de errado, mas dá pra melhorar! Dá pra melhorar!”. Como se houvesse voltado aos vinte e dois anos – em verdade, estava prestes a fazê-lo –, deu um pulo na cadeira e pesquisou os resultados da loteria daquela época. Decorou os números como se fossem fórmulas para um exame final da faculdade: três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois. Repetiu a sequência obsessivamente por quatro dias. No quinto, pegou a estatueta e, sem ritual algum, atirou-a no chão.
Estava na ocasião em que havia recém obtido o emprego como corretor. Faltavam cinco dias para a loteria. Correu, agora com o fôlego renovado pela juventude, e entrou na primeira casa lotérica que viu. Três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois: marcou cada número com um prazer inimaginável, talvez nunca sentido em seus quarenta e tantos anos de experiência terrena. Trabalhou tranquilamente, do jeito de sempre, arrancando elogios e olhares de admiração. Por coincidência, foi naquela semana que viu a pequena Marta, a quem mimou como pôde.
Chegou o domingo: ligou a televisão e começou a esperar pela boa nova. Via o apresentador gritar:
-A primeira bolinha, vamos lá com a primeira bolinha... três! Número zero-três é a primeira bolinha!
Arnaldo começava a entrar em êxtase. Veio a outra:
-E agora, hein, olha lá a segunda sortuda... é o número três-um! Repito: trinta e um!
Arnaldo congela. Sentia uma espada cruzando-lhe o corpo. Uma não:
-Cinquenta! Cinco-zero é o terceiro número!
Desabou. Impotente, assistiu ao sorteio até o fim.
Depois disso, nada lhe restou senão tentar repetir a sua vida. Nem tentou entender o que passara, embora haja criado o hábito de jogar na loteria os mesmos números de sempre (três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois), nunca acertando mais que três. Com o baque, perdeu a autoconfiança. Não conseguia repetir o pulso forte de outrora: era só mais um corretor de ações. Via Marta crescer e não conseguia separar-se daquela que talvez fosse seu único vínculo a uma vida passada, mas totalmente desvinculada de seu futuro. Descontrolado, atacou a menina quando ela ainda tinha dezessete anos e, na fúria de quem nada pôde fazer porque seu ex-sogro o interrompera violentamente, sofreu um acidente de trânsito que lhe tirou o movimento perfeito das pernas.
Morreu velho, aos 87 anos, em uma cidade pequena do interior, para onde se mudara com fins de iniciar uma nova vida. Foi bem sucedido: chegou sem pernas e só saiu de lá sem vida. Por vezes, seus filhos flagravam-no cochichando, amargurado:
-Você deveria ter seguido sua intuição... Deveria ter seguido...


***
Carlos

Carlos ficou fascinado com o ocorrido na praça. Voltou para casa especulando de onde aquilo vinha, por que com eles, como o tempo poderia ser manipulado daquele jeito e se o tempo, afinal, é tão determinante sobre as pessoas, ou, ao menos, sobre ele. Pensar nisso fazia com que ele se sentisse extraordinariamente bem. Sentir-se bem pensando é ótimo quando se tem que tomar decisões importantes: assim, a estatueta o acompanhava aonde trabalhasse. Deixou a estátua já na mesa de seu primeiro estágio, sem medo de que ela se mostrasse a um mundo que a desprezava por desconhecer o seu poder.
Jovem, aproveitou a juventude: usou sua força para ganhar seu espaço e sua energia para se divertir. Adulto, gozou da maturidade: sempre sóbrio no que fazia, consolidou-se como um grande professor. Em meio a isso tudo, encontrou uma mulher com quem valia a pena casar-se e assim o fez. Já velho, curtiu seus últimos dias com a amada e os descendentes de uma maneira que deveria ser regra na humanidade. Já nos seus últimos dias de vida, entregou a estátua para o primogênito, Emerson, dizendo-lhe com um tom rouco e cansado, mas encantadoramente forte:
-Que, ao olhar para esta estátua, você e seus irmãos sempre se lembrem do seguinte: o maior erro que se pode cometer é não cometer erro algum. Essa estátua é a coisa mais valiosa que eu já tive, filho. Agora, ela é sua.
Aos noventa e três anos, faleceu da melhor forma possível: certa noite, dormiu para não acordar mais. O único fato assustador em relação a seu óbito foi relatado pela viúva: ela jurou que o marido dera boa noite a si mesmo aquele dia, pois ouviu, quando ainda estava no banheiro guardando a própria dentadura, uma voz grave, forte e amedrontadora que qualificaria como sombria se não lhe houvesse causado uma agradável sensação de ternura:
-Boa noite, Carlos. Durma em paz.

domingo, 28 de julho de 2013

siga o baile!

quando tudo estiver feio
e nada parecer correto
se a dança não tem sincronia
e os acordes não se acertam nem sob decreto
se mesmo a velha que sempre sorriu
condenar um brinde gentil
lembre-se:
boniteza é questão de gosto
quem diz o incorreto é o corretor
sincronia se consegue com treino
e o mais belo dos sorrisos é o que surge na dor.

quanto à música?

bem,
tolo é se preocupar
enquanto o resto pulsa.
chamem a velha para brindar
a um relógio suíço que não se ajusta.