terça-feira, 17 de setembro de 2013

as três estátuas


A voz no beco

Tinham quinze anos quando aconteceu. Carlos, José e Arnaldo estavam sentados numa praça da cidade, falando sobre os assuntos que qualquer menino de quinze anos conversa – futebol, carro, mulher e histórias inventadas ou mal contadas sobre esses temas. Olharam, os três ao mesmo tempo, para um beco escuro de uma rua sem saída ao lado deles. De lá vinha uma voz suave e, contraditoriamente, amedrontadora:
-José, preste atenção.
José não só prestou atenção como começou a tremer.
-Carlos e Arnaldo, vocês também.
Arnaldo pensou até em correr e gritar pela mãe – era o que morava mais próximo dali –, mas foi contido por Carlos:
-Psiu, fica quieto.
E ficaram. A voz prosseguiu, agora parecendo que vinha de trás deles:
-Na rua da qual veio minha voz, encontrarão três pequenas estátuas. Elas poderão ser muito úteis a vocês: quando bem entenderem, basta quebrá-las que voltarão no tempo a um certo momento desejado. Duvidam? Então por que minha voz agora vem do céu?
E vinha.
-Continuam duvidando? Então por que vão viver isso tudo de novo?
E lá estavam eles falando da nova namorada daquele jogador quando, subitamente, param de falar e escutam, da mesma rua, uma voz capaz de corroer por dentro uma alma:
-José, preste atenção.

***
José

José tinha dezenove anos quando começou a namorar Luiza, uma menina bem bonitinha em quem esteve de olho desde os dezesseis. Todos os amigos do casal já perguntavam quando seria o casório a partir do terceiro ano do relacionamento. Amigos só de José, entretanto, alertavam-lhe sobre a juventude perdida:
-Zé, tomara que você goste mesmo dessa garota, porque não faz ideia do que tá perdendo...
Mas José tinha uma carta na manga: a estatueta recebida naquela noite sombria. Sempre se perguntava quando a usaria e, ao mesmo tempo, sentia-se seguro para fazer o que bem entendesse – ora, o pior que lhe poderia ocorrer seria viver tudo de novo e, se tem gente que reclama que a vida é curta, ele poderia tê-la duas vezes...
No seu sétimo ano de namoro, então, briga pela trecentésima (sem usar hipérbole alguma) vez  com Luiza. Uma ciumeira sem fim acabou com o namoro. José chega em casa chorando e, agarrado ao copo do uísque que ganhara de presente de um amigo que viajara ao exterior, pensou na juventude perdida. A quantas festas não foi, quantos drinques não bebeu, quantas mulheres não beijou... maldita Luiza! Se ele soubesse, nunca teria feito nada a seu respeito! Que perda de tempo... Lembrava-se do mole que a Cláudia da faculdade dava pra ele. Recordava do beijo que a Jéssica, do escritório, tentara lhe roubar durante um churrasco. A cada chance antes perdida, crescia seu ódio por Luiza.
Vai ao baú no qual guardou, carinhosamente, a estátua. Ela repousava, parecida com a estatueta do Oscar e coberta por uma fina camada de poeira, ao lado de alguns troféus de judô conquistados na infância. José não lembrava por que, afinal, tinha deixado o esporte. Antes que pudesse refletir sobre isso, exige-se foco para o que iria fazer. Agarra o pequeno homem, levanta-o com o braço direito e o atira no chão. Queria voltar para o momento no qual chamara Luiza para sair pela primeira vez.
Voltou aos seus dezenove anos. Estava cara a cara com Luiza. Conversou tranquilamente, mas não a convidou para sair e seguiu a vida, sem noção do que fazer e esquecendo-se de tentar descobrir por que ele deixara o judô.
Por fim, a Cláudia da faculdade casou-se precocemente com outro rapaz da turma e a Jéssica do escritório nunca lhe deu bola alguma. José, de fato, aproveitou algumas festas e bebedeiras durante seus anos dourados, dos quais prefere nem lembrar para não se acabar em tristeza e contemplação. Aos vinte e oito anos, casou com Luiza (ela mesma). Foi pai de dois filhos, eternamente traumatizados pela separação dos pais, ocorrida após o flagra presenciado por José ao deparar-se com Luiza  e Cláudia (aquela mesma) na cama.
Dezenove anos depois de jogar fora seus troféus de judô (“Mas pra quê eu quero essas tralhas, mulher? Manda tudo pro lixo!”, gritara para sua segunda e definitiva esposa enquanto se ocupava com temas mais importantes que ele e seu passado – na ocasião, as quartas-de-final da Copa São Paulo de Juniores), morreu sem nunca descobrir por que diabos, afinal, casara com Luiza.

***
Arnaldo

Arnaldo mudou depois do incidente na praça. Se fora o primeiro a pensar em correr para casa após ouvir aquela voz capaz de arranhar as entranhas enquanto causa calafrios em sequência (ele arrepiava-se só em começar a lembrar daquele “José, preste atenção”), passou a encarar os momentos amedrontadores com mais coragem. Ora, se podia voltar no tempo quando bem desejasse, poderia correr riscos e desfrutar da consequente reputação de corajoso e visionário que se configuraria.
E, de fato, Arnaldo tinha uma excelente intuição. Recorrentemente, recebia elogios:
-Mas tu tem um instinto, viu? Benza Deus!
-Arnaldo, depois me passa o número da bruxa que te deu essa bola de cristal que, se essa desgraçada me der uma, eu caso com ela na hora!
Ganhou fama. Tomava posições fortes e convictas, mesmo que nem sempre corretas. A cada erro, ponderava se devia voltar no tempo. “Não”, pensava, “a cada dia sem voltar, é um dia a mais de experiência. Quanto mais tempo passar, mais eu ganho aqui e mais tempo a ganhar eu tenho lá”. Por ser corajoso, de boa intuição e de voz forte, conseguiu um bom emprego já aos 23 anos como corretor de ações. Consolidou-se no mercado, fundou uma escola com seu legado. Muitos anos depois, foi convidado para um cargo executivo em uma grande empresa. Aos quarenta e cinco anos, considerava-se feliz. Rico, bem sucedido, casado com Marta, quem conhecera ainda guriazinha e que se tornou um mulherão – vinte e cinco anos mais nova, mas dane-se: era um mulherão.
Quase todo dia, porém, abria uma pequena porta localizada estrategicamente ao lado do pé direito de quem senta na sua imensa mesa de trabalho. Imaginava o uso que poderia dar à estatueta localizada atrás de alguns livros e que brilhava como se houvesse sido fabricada naquele mesmo dia. Parado, punha a mão no queixo, o cotovelo no braço da cadeira e pensava, sem progressos, no que tinha dado errado na sua vida.
Certa vez, Bentinho, seu filho, pediu um novo videogame. Consultou uma revista do ramo e viu que a única mudança em relação ao anterior, ganhado pelo filho há menos de seis meses, era no design dos botões. Negou o presente de Natal ao filho veementemente:
-Não, esse novo é a mesma coisa.
-Mas papai, o novo... – o filho nem conseguia terminar a frase:
-Não é não, entendeu? O que tem de errado no seu? Acha que ele foi barato? – dizia, firme como achava que deveria ser.
-Não é questão de ter algo de errado no meu, mas é que dava pra ser melhor, pai...
Arnaldo arregalou os olhos instantaneamente. Arrepiou-se como há tempos não fazia. Soltou um largo sorriso: era isso.
-Então, tá, meu filho! Eu compro! - a mudança de feição do pai deixou o menino confuso. Ora, pra quê negar o desejo do garoto se não o veria em muito tempo? Melhor deixá-lo aproveitando alguns minutos de júbilo, pois muito em breve voltaria a não existir.
“Era isso! Bingo!”, pensava Arnaldo enquanto corria para seu escritório, “Não tem nada de errado, mas dá pra melhorar! Dá pra melhorar!”. Como se houvesse voltado aos vinte e dois anos – em verdade, estava prestes a fazê-lo –, deu um pulo na cadeira e pesquisou os resultados da loteria daquela época. Decorou os números como se fossem fórmulas para um exame final da faculdade: três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois. Repetiu a sequência obsessivamente por quatro dias. No quinto, pegou a estatueta e, sem ritual algum, atirou-a no chão.
Estava na ocasião em que havia recém obtido o emprego como corretor. Faltavam cinco dias para a loteria. Correu, agora com o fôlego renovado pela juventude, e entrou na primeira casa lotérica que viu. Três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois: marcou cada número com um prazer inimaginável, talvez nunca sentido em seus quarenta e tantos anos de experiência terrena. Trabalhou tranquilamente, do jeito de sempre, arrancando elogios e olhares de admiração. Por coincidência, foi naquela semana que viu a pequena Marta, a quem mimou como pôde.
Chegou o domingo: ligou a televisão e começou a esperar pela boa nova. Via o apresentador gritar:
-A primeira bolinha, vamos lá com a primeira bolinha... três! Número zero-três é a primeira bolinha!
Arnaldo começava a entrar em êxtase. Veio a outra:
-E agora, hein, olha lá a segunda sortuda... é o número três-um! Repito: trinta e um!
Arnaldo congela. Sentia uma espada cruzando-lhe o corpo. Uma não:
-Cinquenta! Cinco-zero é o terceiro número!
Desabou. Impotente, assistiu ao sorteio até o fim.
Depois disso, nada lhe restou senão tentar repetir a sua vida. Nem tentou entender o que passara, embora haja criado o hábito de jogar na loteria os mesmos números de sempre (três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois), nunca acertando mais que três. Com o baque, perdeu a autoconfiança. Não conseguia repetir o pulso forte de outrora: era só mais um corretor de ações. Via Marta crescer e não conseguia separar-se daquela que talvez fosse seu único vínculo a uma vida passada, mas totalmente desvinculada de seu futuro. Descontrolado, atacou a menina quando ela ainda tinha dezessete anos e, na fúria de quem nada pôde fazer porque seu ex-sogro o interrompera violentamente, sofreu um acidente de trânsito que lhe tirou o movimento perfeito das pernas.
Morreu velho, aos 87 anos, em uma cidade pequena do interior, para onde se mudara com fins de iniciar uma nova vida. Foi bem sucedido: chegou sem pernas e só saiu de lá sem vida. Por vezes, seus filhos flagravam-no cochichando, amargurado:
-Você deveria ter seguido sua intuição... Deveria ter seguido...


***
Carlos

Carlos ficou fascinado com o ocorrido na praça. Voltou para casa especulando de onde aquilo vinha, por que com eles, como o tempo poderia ser manipulado daquele jeito e se o tempo, afinal, é tão determinante sobre as pessoas, ou, ao menos, sobre ele. Pensar nisso fazia com que ele se sentisse extraordinariamente bem. Sentir-se bem pensando é ótimo quando se tem que tomar decisões importantes: assim, a estatueta o acompanhava aonde trabalhasse. Deixou a estátua já na mesa de seu primeiro estágio, sem medo de que ela se mostrasse a um mundo que a desprezava por desconhecer o seu poder.
Jovem, aproveitou a juventude: usou sua força para ganhar seu espaço e sua energia para se divertir. Adulto, gozou da maturidade: sempre sóbrio no que fazia, consolidou-se como um grande professor. Em meio a isso tudo, encontrou uma mulher com quem valia a pena casar-se e assim o fez. Já velho, curtiu seus últimos dias com a amada e os descendentes de uma maneira que deveria ser regra na humanidade. Já nos seus últimos dias de vida, entregou a estátua para o primogênito, Emerson, dizendo-lhe com um tom rouco e cansado, mas encantadoramente forte:
-Que, ao olhar para esta estátua, você e seus irmãos sempre se lembrem do seguinte: o maior erro que se pode cometer é não cometer erro algum. Essa estátua é a coisa mais valiosa que eu já tive, filho. Agora, ela é sua.
Aos noventa e três anos, faleceu da melhor forma possível: certa noite, dormiu para não acordar mais. O único fato assustador em relação a seu óbito foi relatado pela viúva: ela jurou que o marido dera boa noite a si mesmo aquele dia, pois ouviu, quando ainda estava no banheiro guardando a própria dentadura, uma voz grave, forte e amedrontadora que qualificaria como sombria se não lhe houvesse causado uma agradável sensação de ternura:
-Boa noite, Carlos. Durma em paz.

2 comentários: