O apreço pelo belo nos fez humanos. Claro que
alguns outros mamíferos têm uma certa distinção entre o bom e o ruim, o
agradável e o repugnante. Mas somos diferenciados. A beleza, aquela beleza
profunda, do tipo que afaga os ânimos do mais exaltado entre os raivosos, só o
homem pode sentir. Mesmo que chegue a prescindir do uso de seus cinco sentidos.
Ele sabe fazer e apreciar uma boa música como nenhum outro animal. Consegue
reproduzir a lua e as estrelas tão fiel à realidade como eu seria se me casasse
com a Emma Watson. É capaz de cozinhar uma refeição de sabor indescritível e
aproveitá-la como ela merece. Ou alguém já viu algum cão por aí fazendo questão
de comer uma carne sem nervo ou um X-Bacon sem ovo e sem salada? Há a exceção
daqueles muito bem prendados cachorrinhos de madame, que fazem cara feia se o
champignon do lanche da tarde veio com sal além da conta. Eles são a exceção da
regra: apreciam (de uma maneira bem fresca, é verdade) o belo, mas tão somente
porque são cachorrinhos de madame.
É a busca implacável pelo belo e pelo que ele
faz sentir que move a humanidade. Esclareça-se de vez: não se fala da beleza
galã-de-novela-das-oito ou da formosura estética de um quadro de Monet. Fala-se
também delas. Pois cada um tem para
si um modelo de beleza – o que explica o gosto duvidoso de pais cujo
primogênito chama-se Josicleiton ou Edivânderson – e buscará tê-lo sempre em
sua volta. Por isso é que tem gente que prefere música clássica a forró e
vice-versa. O conceito máximo de beleza é aquilo que não impediria Mozart de
convidar uma morena para dançar ao som de Luiz Gonzaga. Talvez a muito provável
falta de aptidão biológica para rebolar do austríaco o fizesse, mas não o
conceito-mor de beleza.
É aí que me lembro da história do Márcio. Da
época que ele era Marcinho.
O Márcio era filho de um mecânico lá de perto da
rua. O conheci porque sou da época em que as crianças falavam mais e digitavam
menos. Era apaixonado, doido de pedra por uma loirinha também das redondezas,
tão bonita quanto seu nome lhe era inapropriado: a Gerdalva. Embora ele nunca
houvesse confessado ou mesmo falado a respeito - assim são os homens -, todos
da turma sabiam que ele era louquinho pela Claudinha. “Claudinha” porque até
então não sabíamos seu nome e, ao contrário de sua mãe, tínhamos mais tato para
eleger nomes de meninas atraentes. Seu único problema era o desinteresse que
jorrava de sua expressão, como se nada no mundo pudesse lhe chamar e manter a
atenção por mais de quinze minutos.
Jogávamos futebol num terreno que atualmente é
mais uma loja de móveis daquelas que nunca tem alguém comprando, mas parecem
existir desde sempre. Mas essa só parece, pois ali o Márcio, eu, o Juninho, o
André Cabeção e tantos outros praticávamos a arte e a luta (no meu caso,
zagueiro clássico, mais luta do que arte) do esporte bretão. E o Márcio era um
craque de bola. Muita gente jurava que ele ia virar um profissional dos bons.
Falava-se até em seleção, fama, o pessoal da rua sendo entrevistado após ele
ser vendido à Roma (sou da época que a Roma inspirava admiração e respeito,
tanto que ninguém errava seu gênero), esses eventos todos que acompanham um
jogador meia boca hoje em dia. Mas o Márcio tinha um problema: não ajudava a
marcar nunca.
-Volta, Márcio! Marca o Pelezinho!
E o Márcio não voltava. O Pelezinho, muito
embora seu apelido não sugira, era mais branco que uma nuvem de verão. Mas essa
já é outra história.
-Marca o Pavão, Márcio!
Naquela vez, a voz não veio do campo. E era mais
fina que o padrão dos jogos de pelada. Era a Claudinha. Chovia muito, e ela
teve que se abrigar na tenda que improvisamos para termos uma sombrinha.
Brasileira que é, aproveitou para acompanhar o cotejo. E o Márcio a obedeceu.
Correu como um louco, tomou a bola do Pavão, tabelou comigo, driblou um,
driblou dois e quase fez um golaço de cobertura. O André Cabeção até hoje jura
de pé junto que um raio atravessou os céus em sinal de espanto no exato momento
em que Márcio começou a correr.
Delírios à parte, o Márcio, desde então, começou
a marcar. E ficou bom nisso. Foi um dos meias mais completos entre os que nunca
se tornaram profissionais. Tínhamos mais idade e menos interesse em jogar
futebol todo dia quando ele decidiu ir abordar a Claudinha. O intento pode ser
resumido em uma fala da já muito bem torneada moça:
-Ah, Márcio, você é bonitinho, fala bem, sabe
jogar bola como ninguém, mas sei lá... Futebol não dá futuro. Meu pai mesmo diz
que é coisa de deliquente, de desocupado. Que eu tenho que buscar um rapaz de
cultura, sabe? Alguém que combine com um terno, com um óculos de leitura.
Márcio, é claro, abateu-se tremendamente. Ficou
tão consternado que esqueceu-se: a Claudinha fora criada pela mãe. E nem tinha
padrasto, tio, avô ou qualquer homem que pudesse inspirar o trato paternal. Largou,
aos poucos e sob inúmeros protestos (inclusive os meus), o futebol. Trocou a
bola pela caneta, as chuteiras pelos livros e o tempo treinando lançamentos
pelo de aula – que aconteciam, aliás, no mesmo horário.
Continuou a conversar, volta e meia, com a
Claudinha. Ele era, mesmo, doidinho por ela. Ela comentava que gostava de uma
música, ele aprendia a tocar violão e a dançar. A Claudinha citava uma passagem
de um autor, o Márcio lia três livros do tal escritor. Dizia que gostava de
filé com fritas, ele aprendia a fazer picanha com batata recheada. E assim
seguiu. Teve até namoricos com outras garotas, mas sempre pensava na loirinha
da rua. Imaginava se ela teria ciúmes se soubesse que ele perambulava com
outras moças pelos cinemas e bares da cidade. Até que, finalmente, começaram a
namorar. Poucas vezes eu vi um rapaz tão realizado. Feliz e careca: ele recém
tinha passado no vestibular para uma engenharia de nome difícil, mas que dá
dinheiro.
Pobre Márcio. Mês e meio depois, a Claudinha,
aquela miserável, o deixou. Sem nem dar um tchau, deixou uma carta com dois
parágrafos e péssimo português dizendo que nunca quis nada com ele e não
poderia prosseguir (palavra que ela escreveu com cedilha) num relacionamento
assim. Márcio, coitado, ficou arrasado. Claudinha, bandida, agora sim merecia
chamar-se Gerdalva. Maldita: sempre fora Gerdalva, nunca Claudinha!
E aqui reside o ponto principal da história. Ao
tanto buscar a beleza de Gerdalva, descobriu outras belezas. O dom da música, o
prazer da boa literatura, o prazer concentrado num contra-filé mal passado.
Tornou-se belo ele mesmo ao tanto tentar alcançar não exatamente a beleza
física da Gerdalva, mas o sentir-se bem que move a humanidade. Isso que o motivara
e o fizera entender melhor o conceito máximo do qual falei mais acima e como o
mundo pode ser belo por mais desagradável que seja.
Márcio formou-se com louvores, casou-se com uma
morena espetacular e hoje mora numa casa simples, de muito bom gosto, perto de
onde morávamos todos. Combina com um terno e com um óculos de leitura do mesmo
jeito que com uma regata e um par de chinelos de borracha.
E a Gerdalva? Bem, a Gerdalva voltou a ser
Claudinha. Deixou de ter aquele seu olhar desinteressado habitual quando
resolveu ser pintora e encontrou sua vocação. Foi num belo dia de chuva.