domingo, 24 de março de 2013

beleza, marcinho, gerdalva e claudinha


 O que diferencia o homem – no sentido homo sapiens do termo – dos outros animais, dizem, é a racionalidade. Eu discordo. No máximo, concordo com ressalvas. Pra mim, a característica mais importante da humanidade seria o apreço pela beleza. O gosto pela estética. Aos apressados, adianto: isso não é uma defesa da vaidade. É, meramente, uma constatação. Explique-se bem: foi naquele momento, há milhares de dezenas de anos, em que um homem (ou uma mulher - e aqui reitero o sentido amplo do termo, o qual repetirei com frequência) parou para apreciar uma paisagem, o som do vento nas folhas, a beleza de sua mulher, o sabor de uma costelinha de mamute ou sabe-se lá o quê que a espécie passou a ser diferente de qualquer outra a pisar neste pequenino planeta.
O apreço pelo belo nos fez humanos. Claro que alguns outros mamíferos têm uma certa distinção entre o bom e o ruim, o agradável e o repugnante. Mas somos diferenciados. A beleza, aquela beleza profunda, do tipo que afaga os ânimos do mais exaltado entre os raivosos, só o homem pode sentir. Mesmo que chegue a prescindir do uso de seus cinco sentidos. Ele sabe fazer e apreciar uma boa música como nenhum outro animal. Consegue reproduzir a lua e as estrelas tão fiel à realidade como eu seria se me casasse com a Emma Watson. É capaz de cozinhar uma refeição de sabor indescritível e aproveitá-la como ela merece. Ou alguém já viu algum cão por aí fazendo questão de comer uma carne sem nervo ou um X-Bacon sem ovo e sem salada? Há a exceção daqueles muito bem prendados cachorrinhos de madame, que fazem cara feia se o champignon do lanche da tarde veio com sal além da conta. Eles são a exceção da regra: apreciam (de uma maneira bem fresca, é verdade) o belo, mas tão somente porque são cachorrinhos de madame.
É a busca implacável pelo belo e pelo que ele faz sentir que move a humanidade. Esclareça-se de vez: não se fala da beleza galã-de-novela-das-oito ou da formosura estética de um quadro de Monet. Fala-se também delas. Pois cada um tem para si um modelo de beleza – o que explica o gosto duvidoso de pais cujo primogênito chama-se Josicleiton ou Edivânderson – e buscará tê-lo sempre em sua volta. Por isso é que tem gente que prefere música clássica a forró e vice-versa. O conceito máximo de beleza é aquilo que não impediria Mozart de convidar uma morena para dançar ao som de Luiz Gonzaga. Talvez a muito provável falta de aptidão biológica para rebolar do austríaco o fizesse, mas não o conceito-mor de beleza.
É aí que me lembro da história do Márcio. Da época que ele era Marcinho.
O Márcio era filho de um mecânico lá de perto da rua. O conheci porque sou da época em que as crianças falavam mais e digitavam menos. Era apaixonado, doido de pedra por uma loirinha também das redondezas, tão bonita quanto seu nome lhe era inapropriado: a Gerdalva. Embora ele nunca houvesse confessado ou mesmo falado a respeito - assim são os homens -, todos da turma sabiam que ele era louquinho pela Claudinha. “Claudinha” porque até então não sabíamos seu nome e, ao contrário de sua mãe, tínhamos mais tato para eleger nomes de meninas atraentes. Seu único problema era o desinteresse que jorrava de sua expressão, como se nada no mundo pudesse lhe chamar e manter a atenção por mais de quinze minutos.
Jogávamos futebol num terreno que atualmente é mais uma loja de móveis daquelas que nunca tem alguém comprando, mas parecem existir desde sempre. Mas essa só parece, pois ali o Márcio, eu, o Juninho, o André Cabeção e tantos outros praticávamos a arte e a luta (no meu caso, zagueiro clássico, mais luta do que arte) do esporte bretão. E o Márcio era um craque de bola. Muita gente jurava que ele ia virar um profissional dos bons. Falava-se até em seleção, fama, o pessoal da rua sendo entrevistado após ele ser vendido à Roma (sou da época que a Roma inspirava admiração e respeito, tanto que ninguém errava seu gênero), esses eventos todos que acompanham um jogador meia boca hoje em dia. Mas o Márcio tinha um problema: não ajudava a marcar nunca.
-Volta, Márcio! Marca o Pelezinho!
E o Márcio não voltava. O Pelezinho, muito embora seu apelido não sugira, era mais branco que uma nuvem de verão. Mas essa já é outra história.
-Marca o Pavão, Márcio!
Naquela vez, a voz não veio do campo. E era mais fina que o padrão dos jogos de pelada. Era a Claudinha. Chovia muito, e ela teve que se abrigar na tenda que improvisamos para termos uma sombrinha. Brasileira que é, aproveitou para acompanhar o cotejo. E o Márcio a obedeceu. Correu como um louco, tomou a bola do Pavão, tabelou comigo, driblou um, driblou dois e quase fez um golaço de cobertura. O André Cabeção até hoje jura de pé junto que um raio atravessou os céus em sinal de espanto no exato momento em que Márcio começou a correr.
Delírios à parte, o Márcio, desde então, começou a marcar. E ficou bom nisso. Foi um dos meias mais completos entre os que nunca se tornaram profissionais. Tínhamos mais idade e menos interesse em jogar futebol todo dia quando ele decidiu ir abordar a Claudinha. O intento pode ser resumido em uma fala da já muito bem torneada moça:
-Ah, Márcio, você é bonitinho, fala bem, sabe jogar bola como ninguém, mas sei lá... Futebol não dá futuro. Meu pai mesmo diz que é coisa de deliquente, de desocupado. Que eu tenho que buscar um rapaz de cultura, sabe? Alguém que combine com um terno, com um óculos de leitura.
Márcio, é claro, abateu-se tremendamente. Ficou tão consternado que esqueceu-se: a Claudinha fora criada pela mãe. E nem tinha padrasto, tio, avô ou qualquer homem que pudesse inspirar o trato paternal. Largou, aos poucos e sob inúmeros protestos (inclusive os meus), o futebol. Trocou a bola pela caneta, as chuteiras pelos livros e o tempo treinando lançamentos pelo de aula – que aconteciam, aliás, no mesmo horário.
Continuou a conversar, volta e meia, com a Claudinha. Ele era, mesmo, doidinho por ela. Ela comentava que gostava de uma música, ele aprendia a tocar violão e a dançar. A Claudinha citava uma passagem de um autor, o Márcio lia três livros do tal escritor. Dizia que gostava de filé com fritas, ele aprendia a fazer picanha com batata recheada. E assim seguiu. Teve até namoricos com outras garotas, mas sempre pensava na loirinha da rua. Imaginava se ela teria ciúmes se soubesse que ele perambulava com outras moças pelos cinemas e bares da cidade. Até que, finalmente, começaram a namorar. Poucas vezes eu vi um rapaz tão realizado. Feliz e careca: ele recém tinha passado no vestibular para uma engenharia de nome difícil, mas que dá dinheiro.
Pobre Márcio. Mês e meio depois, a Claudinha, aquela miserável, o deixou. Sem nem dar um tchau, deixou uma carta com dois parágrafos e péssimo português dizendo que nunca quis nada com ele e não poderia prosseguir (palavra que ela escreveu com cedilha) num relacionamento assim. Márcio, coitado, ficou arrasado. Claudinha, bandida, agora sim merecia chamar-se Gerdalva. Maldita: sempre fora Gerdalva, nunca Claudinha!
E aqui reside o ponto principal da história. Ao tanto buscar a beleza de Gerdalva, descobriu outras belezas. O dom da música, o prazer da boa literatura, o prazer concentrado num contra-filé mal passado. Tornou-se belo ele mesmo ao tanto tentar alcançar não exatamente a beleza física da Gerdalva, mas o sentir-se bem que move a humanidade. Isso que o motivara e o fizera entender melhor o conceito máximo do qual falei mais acima e como o mundo pode ser belo por mais desagradável que seja.
Márcio formou-se com louvores, casou-se com uma morena espetacular e hoje mora numa casa simples, de muito bom gosto, perto de onde morávamos todos. Combina com um terno e com um óculos de leitura do mesmo jeito que com uma regata e um par de chinelos de borracha.
E a Gerdalva? Bem, a Gerdalva voltou a ser Claudinha. Deixou de ter aquele seu olhar desinteressado habitual quando resolveu ser pintora e encontrou sua vocação. Foi num belo dia de chuva.