domingo, 20 de maio de 2012

O copinho de café

Amanhece. Um homem se agacha na calçada suja, cheia de folhas, e observa. Ergue seu pequeno copo plástico com café preto e dá um econômico gole. Talvez, beber mais devagar lhe dê mais disposição, o tempo demore mais a passar e ele tire mais proveito de seu pequeno momento íntimo. São raras as oportunidades de contemplar uma rua durante o amanhecer sem companhia alguma - escassas e pouquíssimo valorizadas, especialmente nesses dias. O céu apresenta uma entonação de quem não quer aparecer, o que não o diferencia muito daqueles que dormem e torcem para que seus sonhos continuem a distanciá-los da realidade. É de se apostar que, nesse dia, se fosse possível um pacto entre a humanidade e os céus para que o amanhecer demorasse umas horinhas a mais, ele aconteceria quase por unanimidade. O "quase" vem, é claro, daquela parcela chata da população que insiste em achar que tudo é lindo e que um amanhecer pálido e sem graça pode render alguma coisa melhor que caras amuadas e despertadores quebrados.

Infelizmente, os céus não falam ou, se falam, ninguém é sensato o suficiente para lhe dar um "bom dia" ou simplesmente elogiar o bom gosto na disposição das estrelas. Se alguém conseguisse falar com os céus, logo perguntaria coisas demasiado inconvenientes, como fofoquinhas sobre a vida amorosa do sol e da lua ou se a ursa menor guarda mágoas com a maior pela fama de pequena que ganhou por causa de alguns insignificantes anos-luz de diferença. Dificilmente alguém seria educado e econômico nas palavras como era o homem com o café naquele amanhecer sem graça – provavelmente, quem falaria com os céus não seria alguém que mereceria esse posto. Se todos fossem aptos a falar, mas os céus restringissem esse privilégio a um eleito, que seria escolhido entre os homens, seria realizada uma eleição, para a qual os inscritos deveriam apresentar comprovantes (assinados, protocolados e rubricados duas vezes após serem enviados para uma análise num prazo de dez dias úteis, prorrogáveis por mais cinco) de sua capacidade em falar celês, possivelmente depois de enfrentar uma fila de quatro horas - ou de meia hora, caso algum atendente fosse conhecido - e de penar para conseguir a fotocópia de algum outro documento inútil que foi exigido pelo atendente como imprescindível para a candidatura.

Se ninguém desse algum jeito para a escolha ser feita em votação secreta, haveria uma eleição geral em que ganharia o que melhor mentisse sobre o quão bom seria para a humanidade que ele tirasse sua dúvida particular com os céus. Depois de eleito, seria denunciado pela oposição como manipulador de massas, mentiroso, corrupto, idiota e aproveitador. Se a oposição tiver um pouco mais de poder, o retiraria do posto para pôr outro cretino manipulador, mentiroso, corrupto e idiota em seu lugar. O eleito, então, formaria uma comissão para a elaboração da pergunta, composta pelos seus apoiadores políticos e por um ou outro especialista em astronomia com quem não tenha antipatia declarada e cuja opinião não seria muito considerada nas deliberações da CPELEPC (Comissão Popular Extraordinária e Legítima para a Escolha da Pergunta aos Céus). Esse grupo seria considerado altamente intelectualizado só por fazer parte de uma comissão com um nome tão bonito e com um objetivo tão importante. Seus membros seriam chamados para participar dos mais célebres talk shows da televisão, para entrevistas exclusivas com revistas renomadas e até para ensaios fotográficos íntimos - aqui, é claro, só haveria convite para os cepelepecos (membros da CPELEPC) mais bonitinhos.

A imprensa, depois de exaltá-los, cobraria uma boa pergunta (com um conteúdo que ela concordasse). O dono de uma grande emissora, depois de construir uma amizade com o eleito em suas festinhas particulares e cheias de gente que finge muito bem que é feliz, faria com que suas ideias fossem consideradas com carinho pela comissão. "Depois de tudo o que eu falei de vocês", falaria, "Não é possível que nem se levantem da cadeira por um amigo". Na mesma lógica, os amigos do dono da emissora dariam pitacos sobre a escolha dos membros da comissão. "Olha, aquele astrônomo lá, sei não, mas ele disse numa entrevista que gosta de reggae. Onde já se viu uma pessoa tão importante gostar desse tipo de música?" ou "Viu aquela tatuagem que aquela moça da comissão tinha? Será que ela não sabe que alguém que ocupa um cargo daqueles não pode nunca ter uma tatuagem tão desinibida?" seriam prováveis comentários. Sugeririam que algum deles fosse escolhido para representar os bons valores dentro da comissão, o que seria proposto pelo dono da emissora e aceito pelos cepelepecos em nome da amizade. Se o laço entre os amigos não fosse tão forte a esse ponto, o dono da emissora, depois de ouvir alguns conselhos, decidiria soltar uma notícia bombástica com grave impacto na opinião pública, que passaria a olhar com mais desconfiança para a comissão. Seria, então, feita uma comissão para investigar suas irregularidades, cujos membros seriam especialistas em trocas de favores cuja escolha resultara de um criteriosa análise governamental. Assim, a CPEIIO-CPELEPC (Comissão Popular Extraordinária de Investigação de Irregularidades Ocorridas na CPELEPC) sairia da mídia em três meses e teria seus processos arquivados por falta de prova - o que não preocuparia os nela interessados, que já haviam afirmado seu poder de influência junto aos cepelepecos, que nunca mais ousariam discordar de dono de emissora alguma.

Um dia, algum membro distraído olharia para os céus e lembraria do verdadeiro motivo da existência de tudo isso. Perguntado sobre o processo de escolha da pergunta, o eleito diria que as opções iniciais de pergunta se encontram em processo de análise gramatical por parte de um órgão autorizado a fazê-lo. "Mas nós não temos um professor de português?", perguntaria o distraído. "Sim, mas ele não pode fazer isso. É ordem superior”. “Mas essa questão não é meio urgente? Será que não dá pra deixar pra lá e deliberar logo sobre a bendita pergunta?”. “Você está dizendo que nossos métodos não são os melhores?”. Essa seria a pergunta chave. É mais recomendável responder que os métodos dos quais se faz parte são, de fato, os melhores. “Não, não. Tem razão, vamos aguardar”.

Findo e prorrogado o prazo da análise gramatical, as opções de pergunta iriam para a deliberação. Agora, seria analisado todo o impacto social que a pergunta poderia causar: os termos nela presentes ofendem alguma minoria? Sintetizam os anseios de uma só classe social? Alguém pode considerá-los preconceituosos? Tais preocupações lembrariam que não existe nenhum representante de minorias na comissão, o que causaria um grande furor e resultaria na criação da ala em defesa dos interesses das minorias na CPELEPC e na CPEIIO-CPELEPC. Finalizada a equipe de apoio e realizadas pesquisas quanto às consequências da pergunta, finalmente alguém leria as alternativas para a pergunta. Pensaria “isso é coisa que se pergunte?”, mas, em público, elogiaria a visão holística de seu autor. Finalmente, depois de inúmeras reuniões, consultas e meses, a pergunta seria escolhida.

Mas o homem agachado na rua não quer saber qual seria. Nada de bom sairia dali, então é melhor nem especular. O melhor a ser feito, pensou, é admirar os céus, que agora pareciam mais animados e, sem muitas explicações, também pareciam animar a humanidade, que começava a se agitar em suas ruas, tão calmas há pouco. Encarou o seu agora frio cafezinho, o tomou num só gole, levantou e bradou aos céus, como se estivessem a sós: “Bom dia, dia!”. Mas o céu não respondeu. Apenas brilhou mais, como faz todo dia. Mesmo que não tenha entendido o que o homem falou, talvez essa seja a resposta fundamental para qualquer pergunta que se preze: prosseguir com a autonomia e a indiferença de quem sabe que continuar não é uma opção.