terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Trigo e a cagada do pombo


Meu irmão me contou, dia desses, que presenciara uma cena que lhe causou espanto: um pombo cagando em outro. Isso mesmo: viu, com os próprios olhos, uma destas nem tão amadas criaturas urbanas defecando sobre uma de suas companheiras de espécie. E eu lhe respondi que havia um quê de poesia nisso. Supondo um universo mágico que tantos acreditam que existe, imaginei que talvez este acontecimento não fosse um mero produto do acaso. Não: foi uma grande vingança.
Tudo começa com a vida de um protagonista chamado, digamos, Trigo. Já chegou ao mundo com o fardo de ser chamado por um nome de planta. Mas se contentou: antes Trigo que, sabe-se lá, Girassol, Fruta-pão ou Joio. Apelidado de Triguinho desde os oito anos, foi um aluno mediano durante o colégio, mais por sua falta de interesse que por sua capacidade. Aos catorze, apaixonou-se por uma menina e contou isso a um amigo. Dez anos depois, o amigo e a moça se casaram após um longo e estável relacionamento construído desde a escola. Triguinho não foi sequer convidado para a festa.
Triguinho, aos dezessete, não acreditava mais em destino. Para ele, tudo era produto e origem do acaso. Por isso, parou de crer que usar a mesma cueca suja daquela vitória épica nos jogos seguintes faria o seu time ganhar o campeonato – além de ser um bocado mais higiênico. Não via relação entre a sua presença no estádio e a derrota da equipe, embora alguns de seus amigos houvessem criado a chamada “Pergunta Preventriga”, que consistia em perguntar a Triguinho se iria ao jogo para evitar qualquer estresse ou contratempo ao irem ao estádio presenciar um revés do clube.
E o ditado “azar no jogo, sorte no amor” não se aplicava a Triguinho. Depois da desilusão dos catorze anos, deixou o amor de lado e perdeu várias oportunidades de aproveitar-se do seu erro. Perdeu, inclusive, o amor de Judite, que era feia aos catorze - quando chegou a se declarar a Triguinho -, mas porque a puberdade chegaria tardiamente para a garota que viraria Judite Cardozo, famosa jornalista brasileira que, dizem, só não foi eleita a musa do ano por uma revista internacional porque trabalharia anos depois para a concorrente da publicação ou porque teria recusado um convite para jantar do editor-chefe. Na verdade, não foi escolhida porque a vencedora era mais bonita mesmo.
Triguinho teve dúvidas para escolher sua profissão. Escolheu Administração e se formou com louvores. Para um descrente do destino, um universo profissional que, ao menos em teoria, valoriza o empreendorismo agradou a Triguinho. Mas Triguinho não dava sorte. Suas ideias pareciam, simplesmente, não funcionar. Abriu alguns tantos negócios, trabalhou para algumas firmas, sempre sem sucesso. Resolveu dar-se férias: homem prudente, tinha algumas reservas para viajar por algum tempo. Deu tchau e bênção para a família e os amigos e partiu para a Austrália por dois meses, Estados Unidos por mais dois e Europa por três. Quando embarcou na aventura, tinha certeza que voltaria com alguma ideia brilhante de negócio ou produto que lhe proveria o sustento pelo resto da vida.
Mas não. Voltou com um filho, produto de uma camisinha mal fabricada e cujo recall fora feito na noite em que Triguinho consumou o ato com uma portuguesa que havia conhecido na Austrália e que havia reencontrado ao acaso na Irlanda. “Ao acaso” porque Triguinho não acreditava em coincidências. Mas a portuguesa, sim: essa foi a principal razão para que ela dormisse com o rapaz naquela trágica noite e não, como ele pensara, suas habilidades (nem tão) formidáveis na sinuca.
Anos depois, Triguinho percebeu isso. Sentado num gramado público, percebeu que, apesar de ser o acaso a força-motriz do mundo, tudo acontece por uma razão. E mais: as pessoas gostam que essa razão esteja associada a elas. E esse foi o momento Eureka de Trigo. Ali, naquele dia ensolarado, sentado despretenciosamente num gramado a três quadras de onde vivera toda a vida, teve uma ideia genial de negócio. Um estalo que revolucionaria o mercado, causaria uma reviravolta em sua vida e na de seus futuros clientes. Sorrindo, resolveu não perder tempo e ir correndo para casa, onde anotaria os pontos principais da ideia e os guardaria a quinze chaves, pois sete não eram suficientes para o prudente e azarado Triguinho. Só que, ao atravessar a rua, sentiu algo em sua careca – mencione-se que Triguinho era calvo desde os dezenove e careca desde os vinte e dois – e olhou para cima. Era um pombo. Um pombo que cagou na sua careca. No meio da rua. Peraí... no meio da rua?
E assim se encerrou a trajetória de Triguinho entre os viventes. A notícia do atropelamento trágico de um empresário e pai de dois filhos – sim, dois porque uma antiga (e muitíssimo feia) namorada o acusara de tê-la engravidado e, embora nunca houvessem transado, o exame de DNA deu positivo e Triguinho teve de assumir a criança, que conseguia ser mais feia que a mãe – não comoveu muita gente além daqueles que o conheciam. No enterro, o padre, contratado pela mãe de Triguinho, clamou que sua alma fosse bem recebida no Paraíso e gozasse da vida eterna em paz.
Mas essa não era a vontade de Triguinho. Não agora.
-Eu quero reencarnar.
-Tudo bem. Então, por favor, dirija-se ao purgatório. É no terceiro andar, uma porta grande, dourada e cheia de buracos, não tem erro.
-Mas senhora... Perdão, eu devo chamar um anjo de senhor ou senhora? Ou senhorita, talvez?
-Não importa, o que o senhor se sinta mais à vontade.
-Ok, então. É que você não entende: eu quero reencarnar como um animal.
-Como um animal? Ok, tudo bem. Mas qual? Devo alertar ao senhor que reencarnar como um cão não vem com a garantia de que receberá uma boa criação como a que acredito que o senhor deu aos seus cachorrinhos...
-Não, senhora. Eu não quero ser um cachorro. Eu quero ser um pombo.
O anjo se surpreendeu. Essa era nova. Finalmente alguma coisa além do “Paraíso, último andar”, “Inferno, espere que ônibus passe no lado de fora” e “Purgatório, terceiro andar, portão dourado e esburacado”. Teve curiosidade e, apesar do dever de manter a postura profissional e desinteressada, soltou um sorriso de canto de boca e perguntou:
-Perdoe a indelicadeza, senhor, mas por que alguém desejaria reencarnar, sabe, como um pombo? É algum fetiche, desejo antigo ou algo do tipo?
Triguinho perdoou a indelicadeza – afinal, estava em algum lugar parecido com o céu, então o perdão era algo que ele realmente deveria começar a praticar – e explicou sua história. Contou ao anjo como vinha aturando o azar e todos os acontecimentos ruins em toda a sua vida por considerá-los produtos do acaso, como conseguia acordar todos os dias e seguir em frente, como chegou a uma ideia de negócio genial e como receber uma cagada de um pombo na cabeça justamente depois desse momento e enquanto atravessava a avenida foi a gota d’água da sua paciência com o universo. Alguém tinha que sofrer por isso. E Triguinho não era estúpido de contestar as autoridades divinas bem debaixo de seus respectivos narizes – apesar de ter certeza de que estes danados se divertiram um bocado às suas custas. E achou a solução.
-Entendo, senhor, mas só por curiosidade: qual foi a tal ideia maravilhosa que teve?
E Triguinho a explicou, detalhe por detalhe.
-Nossa, o senhor tem razão. Eu mesmo viraria um cliente fiel e compraria todos os seus produtos. E olha que eu sou bom em ser fiel, heh heh... – o anjo viu que Triguinho não riu de sua piada infame para quebrar o gelo e prosseguiu – Vou ver o que posso fazer pelo senhor. Não garanto nada, é que estou aqui há pouco tempo e nunca vi um caso como esses... Só um instante.
Triguinho tinha toda a eternidade para aguardar, então aceitou a espera sem problemas. E sorriu quando, três anos depois, o anjo voltou com boas novas:
-Senhor, o seu requerimento foi aprovado. Aqui está um número de protocolo com seus dados, basta levá-lo ao sexto andar, numa porta cinza em que está escrito “Casos de extremo azar em que a cagada de um pombo causa a morte de alguém com futuro brilhante”. Bata forte na porta, o pessoal lá realmente não tem muito trabalho, estavam dormindo quando cheguei. Mas se mostraram empolgados com o seu nome e história...
E assim fez Triguinho. Com um sorriso contido, chegou à sala do sexto andar e bateu. Foi prontamente atendido e recebeu as instruções de reencarnação. Foi-lhe dito que, como caso extremo, poderia escolher entre nascer e crescer seja lá onde os pombos crescem numa cidade, ou simplesmente preencher espiritualmente algum corpo de pombo desprovido de alma. Qualquer que fosse a opção, teria sua consciência humana por um mês, quando passaria a ter uma vida de pombo normal. Ao morrer, voltaria à sede do Paraíso com a consciência final do mês vivido como pombo.
Triguinho aceitou a existência vazia por algumas semanas – que seguramente seria melhor que alguns de seus dias na Terra- e reencarnou em um corpo de ave adulta sem alma.
No começo, foi difícil aprender a se mexer, a fugir das pessoas, a voar e a lidar com a fome constante e digestão quase instantânea. Mas Triguinho estava obstinado. Esperto, voava pouco e ia a alguns locais em que havia fartura de comida. Adaptado, viu que chegou a hora.
Era um sábado de sol parecido com seu dia fatal. Precisava de uma plateia para o que ia fazer, e por isso escolheu um local que era avistado por algumas salas de aula lotadas de gente fazendo prova e, portanto, buscando inspiração – ou a resposta – na janela. E aí voou. Voou assim que um companheiro de espécie decolou em direção a uma das janelas. Adiantou-se um pouco, relaxou e deixou a gravidade agir. Tinha conseguido: um pombo estava todo melado, agoniado e tentando se limpar um pouco mais abaixo. Olhou para a janela e viu o rosto alegremente espantado de meu irmão. A missão foi cumprida. Pombos não sorriem, mas a expressão do Triguinho-pombo, ali, gloriosamente parado e apreciando a cidade sobre o prédio, era a de um pombo feliz. E não por acaso. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

a(a) cama


Nesse mundo só somos donos de nós mesmos
E das nossas camas.
Igual à  própria vida,
Modifica-se por movimentos talvez consequências de sonhos.
Igual à própria vida,
Sem zelo, vira um caos dos mais bisonhos.

Tem gente que tem cama macia
Fácil
E tem gente que se acaricia
Como se chão pudesse virar palácio.

Podemos trocar de lençol, de  cama e colchão
Mudar da fronha ao travesseiro
Mas é impossível fugir da nossa condição
E não nos entregarmos por inteiro.

A cama, como nós,
Vem em diversas formas, tamanhos e cores,
E carrega em si nossos devaneios, pesadelos e dores.
Obrigado, ó cama, por não nos deixar sós.