Meu irmão me contou, dia desses, que presenciara uma cena que lhe
causou espanto: um pombo cagando em outro. Isso mesmo: viu, com os
próprios olhos, uma destas nem tão amadas criaturas urbanas defecando sobre
uma de suas companheiras de espécie. E eu lhe respondi que havia um quê de
poesia nisso. Supondo um universo mágico que tantos acreditam que existe,
imaginei que talvez este acontecimento não fosse um mero produto do acaso. Não:
foi uma grande vingança.
Tudo começa com a vida de um protagonista chamado, digamos,
Trigo. Já chegou ao mundo com o fardo de ser chamado por um nome de planta. Mas
se contentou: antes Trigo que, sabe-se lá, Girassol, Fruta-pão ou Joio.
Apelidado de Triguinho desde os oito anos, foi um aluno mediano durante o colégio, mais por sua falta de interesse que por sua capacidade. Aos catorze, apaixonou-se por uma menina e contou isso a um
amigo. Dez anos depois, o amigo e a moça se casaram após um longo e estável
relacionamento construído desde a escola. Triguinho não foi sequer convidado
para a festa.
Triguinho, aos dezessete, não acreditava mais em destino.
Para ele, tudo era produto e origem do acaso. Por isso, parou de crer que usar
a mesma cueca suja daquela vitória épica
nos jogos seguintes faria o seu time ganhar o campeonato – além de ser um
bocado mais higiênico. Não via relação entre a sua presença no estádio e a
derrota da equipe, embora alguns de seus amigos houvessem criado a chamada
“Pergunta Preventriga”, que consistia em perguntar a Triguinho se iria ao jogo
para evitar qualquer estresse ou contratempo ao irem ao estádio presenciar um
revés do clube.
E o ditado “azar no jogo, sorte no amor” não se aplicava a
Triguinho. Depois da desilusão dos catorze anos, deixou o amor de lado e perdeu
várias oportunidades de aproveitar-se do seu erro. Perdeu, inclusive, o amor de
Judite, que era feia aos catorze - quando chegou a se declarar a Triguinho -,
mas porque a puberdade chegaria tardiamente para a garota que viraria Judite
Cardozo, famosa jornalista brasileira que, dizem, só não foi eleita a musa do
ano por uma revista internacional porque trabalharia anos depois para a
concorrente da publicação ou porque teria recusado um convite para jantar do
editor-chefe. Na verdade, não foi escolhida porque a vencedora era mais bonita mesmo.
Triguinho teve dúvidas para escolher sua profissão.
Escolheu Administração e se formou com louvores. Para um descrente do destino,
um universo profissional que, ao menos em teoria, valoriza o empreendorismo
agradou a Triguinho. Mas Triguinho não dava sorte. Suas ideias pareciam,
simplesmente, não funcionar. Abriu alguns tantos negócios, trabalhou para
algumas firmas, sempre sem sucesso. Resolveu dar-se férias: homem prudente,
tinha algumas reservas para viajar por algum tempo. Deu tchau e bênção para a
família e os amigos e partiu para a Austrália por dois meses, Estados Unidos
por mais dois e Europa por três. Quando embarcou na aventura, tinha certeza que
voltaria com alguma ideia brilhante de negócio ou produto que lhe proveria o
sustento pelo resto da vida.
Mas não. Voltou com um filho, produto de uma camisinha mal
fabricada e cujo recall fora feito na
noite em que Triguinho consumou o ato com uma portuguesa que havia conhecido na
Austrália e que havia reencontrado ao acaso na Irlanda. “Ao acaso” porque
Triguinho não acreditava em coincidências. Mas a portuguesa, sim: essa foi a
principal razão para que ela dormisse com o rapaz naquela trágica noite e não,
como ele pensara, suas habilidades (nem tão) formidáveis na sinuca.
Anos depois, Triguinho percebeu isso. Sentado num gramado
público, percebeu que, apesar de ser o acaso a força-motriz do mundo, tudo
acontece por uma razão. E mais: as pessoas gostam que essa razão esteja
associada a elas. E esse foi o momento Eureka
de Trigo. Ali, naquele dia ensolarado, sentado despretenciosamente num gramado
a três quadras de onde vivera toda a vida, teve uma ideia genial de negócio. Um
estalo que revolucionaria o mercado, causaria uma reviravolta em sua vida e na
de seus futuros clientes. Sorrindo, resolveu não perder tempo e ir correndo
para casa, onde anotaria os pontos principais da ideia e os guardaria a quinze
chaves, pois sete não eram suficientes para o prudente e azarado Triguinho. Só
que, ao atravessar a rua, sentiu algo em sua careca – mencione-se que
Triguinho era calvo desde os dezenove e careca desde os vinte e dois – e olhou
para cima. Era um pombo. Um pombo que cagou na sua careca. No meio da rua. Peraí... no
meio da rua?
E assim se encerrou a trajetória de Triguinho entre os
viventes. A notícia do atropelamento trágico de um empresário e pai de dois
filhos – sim, dois porque uma antiga (e muitíssimo feia) namorada o acusara de tê-la engravidado
e, embora nunca houvessem transado, o exame de DNA deu positivo e Triguinho
teve de assumir a criança, que conseguia ser mais feia que a mãe – não comoveu
muita gente além daqueles que o conheciam. No enterro, o padre, contratado pela
mãe de Triguinho, clamou que sua alma fosse bem recebida no Paraíso e gozasse
da vida eterna em paz.
Mas essa não era a vontade de Triguinho. Não agora.
-Eu quero reencarnar.
-Tudo bem. Então, por favor, dirija-se ao purgatório. É no
terceiro andar, uma porta grande, dourada e cheia de buracos, não tem erro.
-Mas senhora... Perdão, eu devo chamar um anjo de senhor ou
senhora? Ou senhorita, talvez?
-Não importa, o que o senhor se sinta mais à vontade.
-Ok, então. É que você não entende: eu quero reencarnar
como um animal.
-Como um animal? Ok, tudo bem. Mas qual? Devo alertar ao
senhor que reencarnar como um cão não vem com a garantia de que receberá uma
boa criação como a que acredito que o senhor deu aos seus cachorrinhos...
-Não, senhora. Eu não quero ser um cachorro. Eu quero ser
um pombo.
O anjo se surpreendeu. Essa era nova. Finalmente alguma
coisa além do “Paraíso, último andar”, “Inferno, espere que ônibus passe no
lado de fora” e “Purgatório, terceiro andar, portão dourado e esburacado”. Teve
curiosidade e, apesar do dever de manter a postura profissional e
desinteressada, soltou um sorriso de canto de boca e perguntou:
-Perdoe a indelicadeza, senhor, mas por que alguém
desejaria reencarnar, sabe, como um pombo? É algum fetiche, desejo antigo ou
algo do tipo?
Triguinho perdoou a indelicadeza – afinal, estava em algum
lugar parecido com o céu, então o perdão era algo que ele realmente deveria
começar a praticar – e explicou sua história. Contou ao anjo como vinha
aturando o azar e todos os acontecimentos ruins em toda a sua vida por considerá-los
produtos do acaso, como conseguia acordar todos os dias e seguir em frente,
como chegou a uma ideia de negócio genial e como receber uma cagada de um pombo
na cabeça justamente depois desse momento e enquanto atravessava a avenida foi a gota
d’água da sua paciência com o universo. Alguém tinha que sofrer por isso. E
Triguinho não era estúpido de contestar as autoridades divinas bem debaixo de
seus respectivos narizes – apesar de ter certeza de que estes danados se
divertiram um bocado às suas custas. E achou a solução.
-Entendo, senhor, mas só por curiosidade: qual foi a tal
ideia maravilhosa que teve?
E Triguinho a explicou, detalhe por detalhe.
-Nossa, o senhor tem razão. Eu mesmo viraria um cliente
fiel e compraria todos os seus produtos. E olha que eu sou bom em ser fiel, heh
heh... – o anjo viu que Triguinho não riu de sua piada infame para quebrar o
gelo e prosseguiu – Vou ver o que posso fazer pelo senhor. Não garanto nada, é
que estou aqui há pouco tempo e nunca vi um caso como esses... Só um instante.
Triguinho tinha toda a eternidade para aguardar, então
aceitou a espera sem problemas. E sorriu quando, três anos depois, o anjo voltou
com boas novas:
-Senhor, o seu requerimento foi aprovado. Aqui está um
número de protocolo com seus dados, basta levá-lo ao sexto andar, numa porta
cinza em que está escrito “Casos de extremo azar em que a cagada de um pombo
causa a morte de alguém com futuro brilhante”. Bata forte na porta, o pessoal
lá realmente não tem muito trabalho, estavam dormindo quando cheguei. Mas se mostraram empolgados com o seu nome e história...
E assim fez Triguinho. Com um sorriso contido, chegou à
sala do sexto andar e bateu. Foi prontamente atendido e recebeu as instruções
de reencarnação. Foi-lhe dito que, como caso extremo, poderia escolher entre
nascer e crescer seja lá onde os pombos crescem numa cidade, ou simplesmente
preencher espiritualmente algum corpo de pombo desprovido de alma. Qualquer que
fosse a opção, teria sua consciência humana por um mês, quando passaria a ter
uma vida de pombo normal. Ao morrer, voltaria à sede do Paraíso com a
consciência final do mês vivido como pombo.
Triguinho aceitou a existência vazia por algumas semanas –
que seguramente seria melhor que alguns de seus dias na Terra- e reencarnou em
um corpo de ave adulta sem alma.
No começo, foi difícil aprender a se mexer, a fugir das
pessoas, a voar e a lidar com a fome constante e digestão quase instantânea. Mas Triguinho
estava obstinado. Esperto, voava pouco e ia a alguns locais em que havia
fartura de comida. Adaptado, viu que chegou a hora.
Era um sábado de sol parecido com seu dia fatal. Precisava
de uma plateia para o que ia fazer, e por isso escolheu um local que era
avistado por algumas salas de aula lotadas de gente fazendo prova e, portanto,
buscando inspiração – ou a resposta – na janela. E aí voou. Voou assim que um
companheiro de espécie decolou em direção a uma das janelas. Adiantou-se um
pouco, relaxou e deixou a gravidade agir. Tinha conseguido: um pombo estava
todo melado, agoniado e tentando se limpar um pouco mais abaixo. Olhou para a
janela e viu o rosto alegremente espantado de meu irmão. A missão foi cumprida.
Pombos não sorriem, mas a expressão do Triguinho-pombo, ali, gloriosamente parado e apreciando a cidade sobre o prédio, era a de um
pombo feliz. E não por acaso.