Matias não sabia se era sortudo ou
azarado. Órfão de mãe e abandonado pelo pai, viveu na rua até encontrar o Sr.
Raul, homem de idade e vigia de um shopping
center da imensa cidade de Nunci, numa noite escura de quinta-feira.
Naquele dia, a cidade estava vazia em decorrência das comemorações pelo
carnaval, que provocava êxodo massivo e dava a oportunidade a moleques de catorze
anos como Matias perambularem pela cidade à procura de uma esmola ou uma alma gentil.
Quando a noite iniciava, Matias teve
azar: enquanto sentava e olhava para o céu nublado, um carro passou por uma
poça d’água vizinha e o ensopou. Já encharcado, jogou mais água em sua roupa,
pois chorou incessantemente. Havia fugido do orfanato há quase três meses e agora
estava magro como um cão faminto. Não se arrependia, pois era maltratado na
instituição, nunca gostou do ambiente e se dizia que dali não saía sujeito que
se preze. Só sentia falta da comida na mesa.
Nesse momento, o Sr. Raul chegou ao seu
lado. Tinha mais de 70 anos e uma aparência condizente com os anos vividos, mas
se movimentava com grande agilidade e força. Falou com o garoto.
-Meu querido, por que está chorando?
Matias não respondeu.
-Você está bem magro, deve estar com
fome. Venha comigo pra eu te dar um sanduíche. – O velho sentiu a relutância do
menino. – Tudo bem, então. Não quer um hambúrguer? Acho que mais tarde você se
arrepende... Até logo!
O Sr. Raul escutou o “Ei!” após cinco
passos. Não falaram nada além de um “esse” seguido de um olhar guloso e um “o
que é acelga?” até Matias terminar o sanduíche. Já alimentado e confiando no
homem menos porque ele o pagou um sanduíche e mais pela forma com que era
tratado, o garoto pôde explicar de onde viera, como perdera a mãe, que o pai o
abandonara e por que saíra da casa de órfãos. Em vinte minutos, já eram amigos.
Foi aí que veio a proposta:
-Olha aqui, menino. Tá vendo aquele
prédio ali? – apontou para o imenso shopping.
– Eu sou vigia de lá. Toda noite trabalho da meia noite até as oito da manhã.
Não posso leva-lo para casa, já crio quatro dos meus netos e minha mulher não
aceitaria, mas garanto que você não fica sem teto durante a noite. E, se estiver
com fome, sempre posso trazer um lanche. O que me diz?
O menino poderia ter perdido aquela
chance por não haver reagido. O Sr. Raul o empurrou e o conduziu até o grande edifício
branco. O velho mandou Matias ficar perto de uma grade, afastou-se alguns
metros e passou muito tempo gesticulando e falando com seus colegas vigias,
aparentemente os convencendo que o menino era inofensivo. Sob muita relutância,
aceitaram a presença do garoto, desde que sob sua supervisão em tempo integral.
Matias não sabia que algum teto poderia
ser tão alto e que tantas cores conviveriam com letras, desenhos, cartazes e
placas dos formatos mais diversos. O silêncio do lugar lhe trazia uma paz que
talvez nunca havia sentido até então; o eco causado por um pequeno passo fazia-lhe
imaginar o barulho que predominava durante o dia, quando centenas ou milhares
de pés sapateavam pelo chão, com um rumo certo ou apenas vagando em busca de um
caminho ou, simplesmente, de um sorvete gelado.
A cada semana cujas noites Matias passava
no shopping, crescia sua curiosidade
sobre o gosto dos sorvetes. Foi aí que ele decidiu fazer uns bicos no centro da
cidade durante o dia para, finalmente, poder comprar durante o dia uma daquelas
maravilhosas casquinhas dos pôsteres: não eram tão grandes e majestosas como
esperava, mas tinham um gosto divino. Aos poucos e com a ajuda do Sr. Raul, o
moleque conseguiu roupas novas, arrumou lugar pra trabalhar passar o dia – um
estacionamento de um amigo do Sr. Raul – e vinha engordando. Matias não
revelava isso a ninguém, mas tentava dormir durante o dia para poder andar pelo
shopping na noite que, para quase
todos, era vazia e morta. No absoluto silêncio, Matias conseguia escutar tudo
aquilo que pensava. Eram as melhores noites de sua vida.
Fazia mais de dois anos desde que o Sr.
Raul e um encharcado Matias se encontraram na rua escura. Tudo ocorria dentro
do previsto: agora matriculado numa escola, o garoto auxiliava no
estacionamento durante a tarde e seguia religiosamente para o shopping às 10 da noite. Certa vez, os
vigias não o deixaram entrar. Perguntou o motivo e lhe riram na cara. Dormiu na
rua aquele dia.
A sequência se repetiu por mais duas
noites, quando o garoto percebeu que não sabia sequer onde o Sr. Raul morava ou
qualquer forma de conseguir notícias do amigo. Os vigias do shopping, que nunca gostaram da sua
presença por lá, já estavam mais agressivos: não respondiam nada sobre o velho
e proferiam ameaças caso houvesse insistência. O que se passou com o Sr. Raul?
Por que ele nunca lhe dissera sequer onde morava? Matias se enfurecia até que o
pensamento da possível morte do velho passava pela sua cabeça e lhe amolecia os
nervos. Será que tinha sido novamente abandonado?
Preferiu pensar que não. Decidiu conforme
certa vez já havia pensado no meio daquele salão de teto alto: só a morte o
impediria de ver novamente o Sr. Raul, seja ela a morte do velho ou a própria,
que extinguiria seus pensamentos e inúmeras imagens daquele senhor de andar
rápido e alegre. Naquele momento, voltou a questionar se tinha sorte ou azar ao
perder o amigo daquele jeito. Decidiu, então, ir à lanchonete de dois anos e
pouco atrás, pediu novamente o hambúrguer com acelga, o devorou e saiu em busca
de um teto para a noite. Matias escolheu ter sorte.
(Texto de julho de 2014)