sábado, 22 de outubro de 2011

O travesseiro e o indiferente

Era o típico cidadão modelo. Só não era modelo cidadão porque, apesar de ter boa aparência o suficiente para frequentar as passarelas, achava que sua masculinidade nunca mais seria a mesma depois de uma sessão de maquiagem. Maquiagem, só no carnaval - e, fique claro, pela farra. O máximo de feminilidade que poderia apresentar era o seu gosto por alguns álbuns da Madonna, mas aí pode: ela é loira e ainda apresentável nessa idade.

Nasceu em família bem estruturada, mas que se acabou por ter estrutura demais e flexibilidade de menos. Seus pais separaram-se quando tinha 3 anos. A mãe casou-se com o próximo da fila e compôs a antítese da união anterior: um casamento sem solo, tão dinâmico que era nômade. Separou-se 2 anos depois, colocou a culpa em todos os homens - ou, melhor dizendo, no Homem - e hoje, 20 quilos mais gorda, tem um programa de considerável audiência na rádio local sobre culinária e feminismo. O caso do pai é típico: casou com o primeiro amor, que julgou ser eterno e perfeito até o dia do seu fim. Na verdade, ele o achava perfeito até mesmo bem depois do seu fim. Talvez ainda o qualifique assim, embora negue veementemente e profira duros xingamentos à ex. Talvez em anos ele perceba: o que ele achava que vivia nunca foi. O que ele quisera nunca será.

Seu filho, no entanto, não precisou de tanto tempo para acordar e sentir em si o sol congelante do fatalismo. Com a separação precoce dos pais, que sempre achou que seriam unos até o dia da morte, desacreditou no amor. Talvez por isso nunca gostou da primeira fase dos Beatles, de música pop e da Xuxa. Certo, a Xuxa nada tem a ver com isso: não gostava dela tão somente porque os bonecos dançantes que a acompanhavam lhe causavam pesadelos. As mulheres, logicamente, caíam em cima dele. Deu o primeiro beijo na garota mais bonita do colégio, perdeu a virgindade aos 14 sem precisar pagar por isso e aos 18 provavelmente já tinha mais mulheres em sua lista do que muito amigo solteiro do pai. Um sucesso total. O seu segredo era, simplesmente, falar o que as pessoas queriam ouvir. Descobriu isso no momento em que mais pensava durante o dia: no encontro da cabeça com o travesseiro. Da premissa para o êxito, bastou a prática.

Pobre homem. Esquecido do poder da genética - aulas que provavelmente matara para exercitar seu dom -, achou que nunca sentiria falta de uma mulher diferente. Sua indiferença afastou essa possibilidade. Desprezou o primeiro amor por medo de que fosse o último e, por isso, acabaria por viver sem nenhum. Um dia, decidiu mudar. Conheceu uma mulher, lhe fez juras de amor, a pediu em noivado e, alguns meses após, casou-se com ela. Mas faltava algo. Love Me Do ainda não fazia sentido algum. Para esvaziar sua cabeça, passou a ocupar sua rotina. Não adiantava. Alguma coisa não estava certa.

Foi aí que veio o momento cabal. A verdade irrefutável. Olhava para o teto e sua mulher roncava. Lembrou daquela noite em que descobriu o segredo do seu sucesso e se perguntou o que gostaria de ouvir. Pensou, refletiu, meditou.

Só lhe restou lamentar que os travesseiros não falam.