terça-feira, 17 de setembro de 2013

as três estátuas


A voz no beco

Tinham quinze anos quando aconteceu. Carlos, José e Arnaldo estavam sentados numa praça da cidade, falando sobre os assuntos que qualquer menino de quinze anos conversa – futebol, carro, mulher e histórias inventadas ou mal contadas sobre esses temas. Olharam, os três ao mesmo tempo, para um beco escuro de uma rua sem saída ao lado deles. De lá vinha uma voz suave e, contraditoriamente, amedrontadora:
-José, preste atenção.
José não só prestou atenção como começou a tremer.
-Carlos e Arnaldo, vocês também.
Arnaldo pensou até em correr e gritar pela mãe – era o que morava mais próximo dali –, mas foi contido por Carlos:
-Psiu, fica quieto.
E ficaram. A voz prosseguiu, agora parecendo que vinha de trás deles:
-Na rua da qual veio minha voz, encontrarão três pequenas estátuas. Elas poderão ser muito úteis a vocês: quando bem entenderem, basta quebrá-las que voltarão no tempo a um certo momento desejado. Duvidam? Então por que minha voz agora vem do céu?
E vinha.
-Continuam duvidando? Então por que vão viver isso tudo de novo?
E lá estavam eles falando da nova namorada daquele jogador quando, subitamente, param de falar e escutam, da mesma rua, uma voz capaz de corroer por dentro uma alma:
-José, preste atenção.

***
José

José tinha dezenove anos quando começou a namorar Luiza, uma menina bem bonitinha em quem esteve de olho desde os dezesseis. Todos os amigos do casal já perguntavam quando seria o casório a partir do terceiro ano do relacionamento. Amigos só de José, entretanto, alertavam-lhe sobre a juventude perdida:
-Zé, tomara que você goste mesmo dessa garota, porque não faz ideia do que tá perdendo...
Mas José tinha uma carta na manga: a estatueta recebida naquela noite sombria. Sempre se perguntava quando a usaria e, ao mesmo tempo, sentia-se seguro para fazer o que bem entendesse – ora, o pior que lhe poderia ocorrer seria viver tudo de novo e, se tem gente que reclama que a vida é curta, ele poderia tê-la duas vezes...
No seu sétimo ano de namoro, então, briga pela trecentésima (sem usar hipérbole alguma) vez  com Luiza. Uma ciumeira sem fim acabou com o namoro. José chega em casa chorando e, agarrado ao copo do uísque que ganhara de presente de um amigo que viajara ao exterior, pensou na juventude perdida. A quantas festas não foi, quantos drinques não bebeu, quantas mulheres não beijou... maldita Luiza! Se ele soubesse, nunca teria feito nada a seu respeito! Que perda de tempo... Lembrava-se do mole que a Cláudia da faculdade dava pra ele. Recordava do beijo que a Jéssica, do escritório, tentara lhe roubar durante um churrasco. A cada chance antes perdida, crescia seu ódio por Luiza.
Vai ao baú no qual guardou, carinhosamente, a estátua. Ela repousava, parecida com a estatueta do Oscar e coberta por uma fina camada de poeira, ao lado de alguns troféus de judô conquistados na infância. José não lembrava por que, afinal, tinha deixado o esporte. Antes que pudesse refletir sobre isso, exige-se foco para o que iria fazer. Agarra o pequeno homem, levanta-o com o braço direito e o atira no chão. Queria voltar para o momento no qual chamara Luiza para sair pela primeira vez.
Voltou aos seus dezenove anos. Estava cara a cara com Luiza. Conversou tranquilamente, mas não a convidou para sair e seguiu a vida, sem noção do que fazer e esquecendo-se de tentar descobrir por que ele deixara o judô.
Por fim, a Cláudia da faculdade casou-se precocemente com outro rapaz da turma e a Jéssica do escritório nunca lhe deu bola alguma. José, de fato, aproveitou algumas festas e bebedeiras durante seus anos dourados, dos quais prefere nem lembrar para não se acabar em tristeza e contemplação. Aos vinte e oito anos, casou com Luiza (ela mesma). Foi pai de dois filhos, eternamente traumatizados pela separação dos pais, ocorrida após o flagra presenciado por José ao deparar-se com Luiza  e Cláudia (aquela mesma) na cama.
Dezenove anos depois de jogar fora seus troféus de judô (“Mas pra quê eu quero essas tralhas, mulher? Manda tudo pro lixo!”, gritara para sua segunda e definitiva esposa enquanto se ocupava com temas mais importantes que ele e seu passado – na ocasião, as quartas-de-final da Copa São Paulo de Juniores), morreu sem nunca descobrir por que diabos, afinal, casara com Luiza.

***
Arnaldo

Arnaldo mudou depois do incidente na praça. Se fora o primeiro a pensar em correr para casa após ouvir aquela voz capaz de arranhar as entranhas enquanto causa calafrios em sequência (ele arrepiava-se só em começar a lembrar daquele “José, preste atenção”), passou a encarar os momentos amedrontadores com mais coragem. Ora, se podia voltar no tempo quando bem desejasse, poderia correr riscos e desfrutar da consequente reputação de corajoso e visionário que se configuraria.
E, de fato, Arnaldo tinha uma excelente intuição. Recorrentemente, recebia elogios:
-Mas tu tem um instinto, viu? Benza Deus!
-Arnaldo, depois me passa o número da bruxa que te deu essa bola de cristal que, se essa desgraçada me der uma, eu caso com ela na hora!
Ganhou fama. Tomava posições fortes e convictas, mesmo que nem sempre corretas. A cada erro, ponderava se devia voltar no tempo. “Não”, pensava, “a cada dia sem voltar, é um dia a mais de experiência. Quanto mais tempo passar, mais eu ganho aqui e mais tempo a ganhar eu tenho lá”. Por ser corajoso, de boa intuição e de voz forte, conseguiu um bom emprego já aos 23 anos como corretor de ações. Consolidou-se no mercado, fundou uma escola com seu legado. Muitos anos depois, foi convidado para um cargo executivo em uma grande empresa. Aos quarenta e cinco anos, considerava-se feliz. Rico, bem sucedido, casado com Marta, quem conhecera ainda guriazinha e que se tornou um mulherão – vinte e cinco anos mais nova, mas dane-se: era um mulherão.
Quase todo dia, porém, abria uma pequena porta localizada estrategicamente ao lado do pé direito de quem senta na sua imensa mesa de trabalho. Imaginava o uso que poderia dar à estatueta localizada atrás de alguns livros e que brilhava como se houvesse sido fabricada naquele mesmo dia. Parado, punha a mão no queixo, o cotovelo no braço da cadeira e pensava, sem progressos, no que tinha dado errado na sua vida.
Certa vez, Bentinho, seu filho, pediu um novo videogame. Consultou uma revista do ramo e viu que a única mudança em relação ao anterior, ganhado pelo filho há menos de seis meses, era no design dos botões. Negou o presente de Natal ao filho veementemente:
-Não, esse novo é a mesma coisa.
-Mas papai, o novo... – o filho nem conseguia terminar a frase:
-Não é não, entendeu? O que tem de errado no seu? Acha que ele foi barato? – dizia, firme como achava que deveria ser.
-Não é questão de ter algo de errado no meu, mas é que dava pra ser melhor, pai...
Arnaldo arregalou os olhos instantaneamente. Arrepiou-se como há tempos não fazia. Soltou um largo sorriso: era isso.
-Então, tá, meu filho! Eu compro! - a mudança de feição do pai deixou o menino confuso. Ora, pra quê negar o desejo do garoto se não o veria em muito tempo? Melhor deixá-lo aproveitando alguns minutos de júbilo, pois muito em breve voltaria a não existir.
“Era isso! Bingo!”, pensava Arnaldo enquanto corria para seu escritório, “Não tem nada de errado, mas dá pra melhorar! Dá pra melhorar!”. Como se houvesse voltado aos vinte e dois anos – em verdade, estava prestes a fazê-lo –, deu um pulo na cadeira e pesquisou os resultados da loteria daquela época. Decorou os números como se fossem fórmulas para um exame final da faculdade: três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois. Repetiu a sequência obsessivamente por quatro dias. No quinto, pegou a estatueta e, sem ritual algum, atirou-a no chão.
Estava na ocasião em que havia recém obtido o emprego como corretor. Faltavam cinco dias para a loteria. Correu, agora com o fôlego renovado pela juventude, e entrou na primeira casa lotérica que viu. Três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois: marcou cada número com um prazer inimaginável, talvez nunca sentido em seus quarenta e tantos anos de experiência terrena. Trabalhou tranquilamente, do jeito de sempre, arrancando elogios e olhares de admiração. Por coincidência, foi naquela semana que viu a pequena Marta, a quem mimou como pôde.
Chegou o domingo: ligou a televisão e começou a esperar pela boa nova. Via o apresentador gritar:
-A primeira bolinha, vamos lá com a primeira bolinha... três! Número zero-três é a primeira bolinha!
Arnaldo começava a entrar em êxtase. Veio a outra:
-E agora, hein, olha lá a segunda sortuda... é o número três-um! Repito: trinta e um!
Arnaldo congela. Sentia uma espada cruzando-lhe o corpo. Uma não:
-Cinquenta! Cinco-zero é o terceiro número!
Desabou. Impotente, assistiu ao sorteio até o fim.
Depois disso, nada lhe restou senão tentar repetir a sua vida. Nem tentou entender o que passara, embora haja criado o hábito de jogar na loteria os mesmos números de sempre (três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois), nunca acertando mais que três. Com o baque, perdeu a autoconfiança. Não conseguia repetir o pulso forte de outrora: era só mais um corretor de ações. Via Marta crescer e não conseguia separar-se daquela que talvez fosse seu único vínculo a uma vida passada, mas totalmente desvinculada de seu futuro. Descontrolado, atacou a menina quando ela ainda tinha dezessete anos e, na fúria de quem nada pôde fazer porque seu ex-sogro o interrompera violentamente, sofreu um acidente de trânsito que lhe tirou o movimento perfeito das pernas.
Morreu velho, aos 87 anos, em uma cidade pequena do interior, para onde se mudara com fins de iniciar uma nova vida. Foi bem sucedido: chegou sem pernas e só saiu de lá sem vida. Por vezes, seus filhos flagravam-no cochichando, amargurado:
-Você deveria ter seguido sua intuição... Deveria ter seguido...


***
Carlos

Carlos ficou fascinado com o ocorrido na praça. Voltou para casa especulando de onde aquilo vinha, por que com eles, como o tempo poderia ser manipulado daquele jeito e se o tempo, afinal, é tão determinante sobre as pessoas, ou, ao menos, sobre ele. Pensar nisso fazia com que ele se sentisse extraordinariamente bem. Sentir-se bem pensando é ótimo quando se tem que tomar decisões importantes: assim, a estatueta o acompanhava aonde trabalhasse. Deixou a estátua já na mesa de seu primeiro estágio, sem medo de que ela se mostrasse a um mundo que a desprezava por desconhecer o seu poder.
Jovem, aproveitou a juventude: usou sua força para ganhar seu espaço e sua energia para se divertir. Adulto, gozou da maturidade: sempre sóbrio no que fazia, consolidou-se como um grande professor. Em meio a isso tudo, encontrou uma mulher com quem valia a pena casar-se e assim o fez. Já velho, curtiu seus últimos dias com a amada e os descendentes de uma maneira que deveria ser regra na humanidade. Já nos seus últimos dias de vida, entregou a estátua para o primogênito, Emerson, dizendo-lhe com um tom rouco e cansado, mas encantadoramente forte:
-Que, ao olhar para esta estátua, você e seus irmãos sempre se lembrem do seguinte: o maior erro que se pode cometer é não cometer erro algum. Essa estátua é a coisa mais valiosa que eu já tive, filho. Agora, ela é sua.
Aos noventa e três anos, faleceu da melhor forma possível: certa noite, dormiu para não acordar mais. O único fato assustador em relação a seu óbito foi relatado pela viúva: ela jurou que o marido dera boa noite a si mesmo aquele dia, pois ouviu, quando ainda estava no banheiro guardando a própria dentadura, uma voz grave, forte e amedrontadora que qualificaria como sombria se não lhe houvesse causado uma agradável sensação de ternura:
-Boa noite, Carlos. Durma em paz.

domingo, 28 de julho de 2013

siga o baile!

quando tudo estiver feio
e nada parecer correto
se a dança não tem sincronia
e os acordes não se acertam nem sob decreto
se mesmo a velha que sempre sorriu
condenar um brinde gentil
lembre-se:
boniteza é questão de gosto
quem diz o incorreto é o corretor
sincronia se consegue com treino
e o mais belo dos sorrisos é o que surge na dor.

quanto à música?

bem,
tolo é se preocupar
enquanto o resto pulsa.
chamem a velha para brindar
a um relógio suíço que não se ajusta.

a visão do cego

o chão é torto,
nada é reto.
tudo é barulho
e chuva forte não vê teto.

aqui, porém, clamam, gritam, choram, anunciam:
"tudo o que veem está certo!"
"não!", contesta o cego
"o certo
é que do reto
nunca chegaremos perto."

quarta-feira, 22 de maio de 2013

o formulário

Verônica, três meses depois de tomar a decisão – e de trair Marcelo, que, faça-se justiça, também a traíra, embora jure que fora obrigado a ir para a cama com Carlinha, (ex) amiga de Verônica – finalmente tomou coragem e uísque (e vodka, e cerveja, e caninha com mel e caipirinhas) o suficiente para acabar o namoro. Desabafava.
-Sabe o que é, Marcelinho? Você não me escuta. Sempre acha que tá bom. Não se interessa por saber a opinião dos outros. Não se interessa por saber a minha opinião. Tenha santa paciência, Marcelo!
-Mas amor...
Ela nem o deixava falar:
-Mas amor coisíssima nenhuma! Você nunca escuta! Já parou pra pensar em quão ruim você é por isso até mesmo no sexo? A própria Carlinha, aquela vaca, disse! Já tomei a decisão e não vou mudar, está tudo acabado!
Virou o resto da cerveja e ainda despediu-se magistralmente.
-Adeus! E pague a conta, você que escolheu esse bar ruim e caro!
Verônica, em seu piti de término de namoro, estava certa em uma coisa: ele não era muito de ouvir opiniões. Já custava-lhe muito prestar atenção em aulas importantes, quanto mais em pessoas. Nem gostava muito da agora ex-namorada: achou até bastante conveniente que fosse ela a terminar o relacionamento. Não ligaria para nada do que ela falou, mas prestou atenção a partir de quando as palavras “ruim” e “sexo” estavam perigosamente próximas no discurso. Ficou encucado e até com medo daquele desabafo. Será?
Passou uma semana e Verônica ligou dizendo que o amava e que quem falara tudo aquilo fora o álcool e não ela. A conversa não durou muito, já que quem atendeu o telefone foi a Carlinha. Dez anos mais tarde Verônica casaria-se com um surdo-mudo.
Decorreu-se um mês e Marcelo ainda estava com aquilo na cabeça: será que era tão ruim de cama assim? Será que a Carlinha, a Verônica e outras tantas sempre fingiam? O que ele tinha de bom, afinal? O que teria de melhorar?
Estava na sala de aula quando lhe veio à cabeça a brilhante solução: fazer formulários. Isso: formulários de satisfação das suas conquistas. Exatamente como aqueles de qualquer restaurante de macarrão, mas que fossem efetivamente respondidos e não servissem só para clientes esporádicos anotarem telefones ou tecerem rabiscos. Começou a fazer o rascunho ali mesmo. Algumas horas mais tarde, o Formulário de Satisfação Sexual do Marcelinho estava pronto.
Agora vinha a parte mais difícil: arrumar quem os respondesse. Mas um homem com o orgulho ferido atrai mais as mulheres, principalmente se, como Marcelinho, morar numa cobertura na beira da praia e for filho de um dos homens mais ricos do estado. Finalmente, transou com a Carla (que, apesar do nome, era menor que a Carlinha). Perguntou, finalizado o ato:
-E aí, gostou?
-Ai, foi show!
-Mesmo?
-Claro, por que você acha que eu mentiria?
“Talvez porque a gente jantou em outra cidade e veio de helicóptero pra cá?” foi o que ele pensou e quis, no fundo responder. Preferiu ater-se ao seu objetivo.
-Então tá. Olha... É que, como você sabe, eu perdi minha mãe muito cedo – Carla assustou-se –, então minha psicóloga disse pra eu aplicar esses questionários aqui para as minhas parceiras sexuais. Não é nada demais, só pra auxiliar e desvendar alguns aspectos do meu subconsciente e ter algum resultado nesse tratamento que eu faço desde que, você sabe – ele já percebia uma expressão de pena na moça –, aconteceu...
-Claro! Ajudo sim! Passa isso pra cá!
E começou a responder. Volta e meia, fazia uma cara de espanto ou estranheza, mas respondia como se estivesse numa prova da faculdade. A certo ponto, entretanto, não resistiu:
-Benzinho?
Marcelo arrepiou-se só por ser chamado de benzinho por ela. Será que achava que ele queria um caso sério? Respondeu o mais friamente que pôde, porém da mesma forma que faria se realmente quisesse algo a mais com a moça:
-Oi.
-Olha, tudo bem que eu não sei nada de psicologia, mas qual a relação entre a parte do meu corpo que você deveria ter tocado enquanto – ela hesitou como normalmente faz quem quer dizer “transar” e não está entre pessoas mais íntimas ou precisamente em vias de transar –, err, fazíamos aquilo e o trauma pela sua mãe? Assim, com todo respeito, mas eu não entendo.
-Ah, sei lá! É psicologia, quem entende?
-Eu mesma não... E classificar o seu desempenho? E escolher entre essas alternativas aqui pro tamanho, sabe, daquilo? Não acha que é meio pessoal?
-Sim, mas o seu anonimato está garantido. Eu vou depositar seu formulário naquela urna ali – apontou para o objeto, que tinha a sigla FSSM em letras garrafais – e depois a entrego fechadinha, lacrada para minha psicóloga.
-Uma urna? Como assim? Você tem que transar – agora Carla estava com raiva, estado de humor no qual se perde aqueles pudores habituais – com meio mundo de gente pra resolver um problema psicológico? Psicóloga boa essa, hein? Meu filho, teu problema não é psicológico, é mental!
Marcelo se animava, embora se mantivesse sério. A urna funcionava para afastar relacionamentos. Mais um acerto. Calmo e manipulador, esquivou-se:
-Olha, isso foi uma especialista que falou. Me desculpe se eu perdi uma pessoa tão importante quando tinha só 13 anos e faria tudo pra tê-la aqui de volta em troca de todas as mulheres do mundo. Mil desculpas, certo? – Carla já mudava de feição – Agora me dê licença, vou no banheiro.
E foi depressa ao lavabo, como se estivesse prestes a desabar em choro. Por cinco minutos, escutou, sorrindo, Carla pedir desculpas e até prometendo uma “ajuda” no tratamento ao indicar-lhe algumas amigas mais fáceis. Aí, no sexto minuto, seu celular começou a tocar. Pediu que Carla o levasse.
-Quem é?
-Tua mãe.

terça-feira, 16 de abril de 2013

parai, chão

não sou o que fui
nem o que sou.
não sou o que era
pois ele acabou.
não vejo o que flui
e, quando vejo, passou.
para-o-chão fito os olhos
e na distração embarco.
perdido, me acho.

domingo, 7 de abril de 2013

angústia nossa de cada dia


Ela estava sentada na praia há um bom tempo. Não sabia precisá-lo em minutos ou horas, só que passava um largo período ali. Encontrava-se de costas para o mar porque olhava, com curiosidade, dois velhinhos: o primeiro, mais sentado na bengala que no banco, a corcunda acusando que a gravidade é mais forte que ele jamais havia suposto. Usava um daqueles chapéus em forma de côco típicos da terceira idade, óculos de haste escura e um colete cinza por cima da camisa branca. A segunda, aparentemente mais jovem, sentada num banco com encosto, vestia um sobretudo com jeito de que já fora elegantíssimo e mexia os próprios lábios com o indicador esquerdo, protagonizando um gesto bobo e contraditoriamente pesado. Rita não conseguia sair dali. Nem se lembrava do livro que trouxera para ler ao som do oceano naquele meio de tarde nublado. Tampouco se dava conta dos ruídos marítimos: estavam ali ela, o silêncio e os dois velhos.
O que mais estarrecia a moça jovem, relativamente bonita, cabelos curtos, meio gordinha – culpa do último namorado, que, além de galinha, era rico e a levava a ótimos restaurantes toda vez que renovavam o relacionamento – eram os olhares dos dois: pareciam o mesmo. Vazios. Semelhantes ao de um cachorro entediado após a morte do amado dono, como se os seus corações houvessem petrificado embora continuassem atravessáveis por pequenas doses de água. Corações de pedra, mas férteis. Protegidos pois, caso contrário, explodem.
A angústia crescia em Rita. Não queria ter um olhar vazio na sua velhice. Tinha planos, metas, amigos solícitos a ajudarem quando bem necessitasse,  livros a ler, filmes a assistir. Como alguém pode, depois de viver (ou poder haver vivido) tanto, ter um olhar sem conteúdo? Aquilo não iria ficar assim. Calçou as sandálias, limpou-se da sempre inconveniente areia de praia e levantou-se.
-É complicado, querida.
Rita decidira falar com o velho – que tinha cara mais simpática – com uma abordagem do tipo “tá um vento forte hoje, né?” e passaria a tentar obter suas respostas com perguntas sutis, mas profundas como a recém feita “esse ano tá passando muito ligeiro, não? Parece que o Natal foi ontem...”. Pela resposta do seu Odair (logicamente, perguntara seu nome), aproximava-se de seu objetivo.
-Como assim, seu Odair?
-Essa questão do tempo, sabe... É muito difícil. Tanto que todo mundo tenta explicá-lo por metáforas, parábolas e tudo mais. Nunca chegam pra dizer o que o tempo é exatamente, só sabem apontar e dizer que o tempo é aquilo.
Rita fez uma expressão de aluno de ensino fundamental em aula de cálculo 2. O velho emendou, sempre falando pausadamente, voz grave e levemente rouca como a de qualquer ancião:
-Agora, por exemplo. Você falou do Natal e que o ano passa rápido. Essa é a coisa mais óbvia sobre o tempo: ele passa. Mas as pessoas, ao invés de falarem “o tempo passa”, preferem apontar para as espinhas dos netos. Pensam naquilo, sabem o que é, mas preferem dar exemplos, puxar outro assunto. Acho que isso é próprio da humanidade. Temos tanto medo que o tempo passe que perdemos tempo sem saber o que fazer dele.
-E aí vivemos a angústia nossa de cada dia.
Odair sorriu. A garota realmente prestava atenção.
-Isso, isso.
Prosseguiu:
-E vou te contar uma coisa: eu podia ter sido um dos grandes. Todo dia eu venho aqui e acabo por pensar nisso. Sempre gostei muito de música, especialmente de jazz. Você gosta, Marta?
-Rita.
-Quê?
-O meu nome é Rita, senhor. Mas gosto sim.
Rita mentiu. Achava o jazz muito paradão, ritmo em excesso pra pouco movimento. Não que ela entendesse de música e soubesse o conceito de ritmo ou movimento: só não se digladiava ao escutar o ritmo nascido nos bares de Nova Orleans.
-Ah, perdão. Esse assunto me deixa desnorteado. Pois bem. Eu era muito bom no saxofone. Tão bom que fui convidado a ir para os Estados Unidos. Eu sabia tanto de inglês quanto os jovens hoje entendem de música – Rita riu –, mas há linguagens que dispensam a fala. O olhar, o gesto e, para mim, a mais bonita delas: a música instrumental.
Seu Odair perdeu-se em seu olhar mais uma vez.
-E o senhor foi? – Rita tentou retorná-lo à realidade. Num pequeno estalo, ele respondeu:
-Ah, sim. Quer dizer: não. E o melhor: não sei se me arrependo. Embora eu pudesse haver sido um sucesso, aqui eu fiz uma boa vida. Não devo nada a ninguém, trabalhei honestamente, tenho bons filhos, netos inteligentes – o velho lembrou que um deles estava solteiro e que Rita não era de se jogar fora, mas preferiu deixar o assunto para depois – e tudo que sempre almejei.
-Mas será que lá você – Rita já se considerou íntima o suficiente para tratá-lo informalmente – não teria tudo isso? Digo, eu mesma conheço gente que foi para a Europa, Estados Unidos e até Paquistão – ela tinha um tio, conhecido como “Evandro, o Doido”, que decidiu, do dia para a noite, morar no Paquistão – e que se deram muito bem.
-Essa não é a questão, querida. Tudo pode acontecer. Mas sempre fica aquele “e se”. Nunca me esqueço de quando meu primeiro filho disse aos seus 10 aninhos de sabedoria que o pudim só era gostoso daquele jeito porque todo dia tinha frango com purê.
Faz sentido, pensou Rita. Odair prosseguiu:
-O que eu quero dizer, minha filha – velho tem mania de chamar qualquer um de filho – é que nada volta. Vi muita gente passar a juventude fazendo coisas de velho para chegar na velhice achando que ainda são jovens. Até chapinha de chocolate fazem. Fazem o que não querem para depois fazerem o que já quiseram. Só se vive uma vez dos 17 até os 33 anos. Ao mesmo tempo, não dá pra fazer tudo o que se quer, senão você nem chega aos 25. Sobremesa é bom, mas quem só come pudim fica desnutrido e gordo. E não dá pra fugir disso: a vida é uma mistura do que podemos com o que devemos fazer dela com uma pitada de nós mesmos.
-Você gosta de uma metáfora com culinária, né? – perguntou Rita, sorrindo. Odair soltou uma gargalhada.
-É que na velhice você arruma tempo pra cozinhar... – seguiu gargalhando. – Na verdade, de culinária gosto, mas, como já te disse, não aprecio tanto assim as metáforas. Elas tornam a explicação mais fácil, mas não explicam muito. Pessoas pensam em conceitos máximos sobre a existência e o tempo, mas não os enunciam, talvez com medo de que sejam verdade. E a verdade final é inconveniente: tudo acaba. Você, eu (provavelmente antes), aquele cara de pau ali que não limpou a sujeira de seu cachorro, esse mar, o agora e mesmo o que nem existe. E, se existe o belo, é porque existe o feio. Cabe a cada um buscar o que lhe convém e interessa, senão, num estalo, estará velho e sentado na orla da cidade, sem amigos ou confidentes.
Rita estranhou. Não era ele quem estava satisfeito com a vida pacata que levara? Odair sorriu para continuar:
-Mas também se poderá ser um velho solitário e realizado. Questão de perspectiva.
A moça estava boquiaberta. Nem reparou que já estava escuro. Odair, sim:
-Querida, muitíssimo obrigado por me ouvir e fazer companhia. Vocês, jovens, às vezes são muito imediatos, querem tudo e não conseguem nada. Falta mistério. Mas isso é assunto pra outro dia, não? Já está tarde, minha esposa deve estar preocupada.
Rita concordou, despediu-se e prometeu, após muita insistência, adicionar o neto de seu Odair, Martinho, “numa dessas conversas de computador aí”. Estava tarde e sentia fome. Foi a pé para casa, pensando nas falas daquele senhor da fala mansa e firme. Chegou em casa e sua mãe, de longe, disse:
-Ah, ainda bem, Rita! Chegou na hora do jantar! Venha pra mesa, tá tudo quentinho!
Rita não respondeu, foi até a cozinha e a beijou. Lavando as mãos e com o estômago doendo, perguntou:
-Mãe, o que tem pra jantar?
-Frango, purê e salada.

domingo, 24 de março de 2013

beleza, marcinho, gerdalva e claudinha


 O que diferencia o homem – no sentido homo sapiens do termo – dos outros animais, dizem, é a racionalidade. Eu discordo. No máximo, concordo com ressalvas. Pra mim, a característica mais importante da humanidade seria o apreço pela beleza. O gosto pela estética. Aos apressados, adianto: isso não é uma defesa da vaidade. É, meramente, uma constatação. Explique-se bem: foi naquele momento, há milhares de dezenas de anos, em que um homem (ou uma mulher - e aqui reitero o sentido amplo do termo, o qual repetirei com frequência) parou para apreciar uma paisagem, o som do vento nas folhas, a beleza de sua mulher, o sabor de uma costelinha de mamute ou sabe-se lá o quê que a espécie passou a ser diferente de qualquer outra a pisar neste pequenino planeta.
O apreço pelo belo nos fez humanos. Claro que alguns outros mamíferos têm uma certa distinção entre o bom e o ruim, o agradável e o repugnante. Mas somos diferenciados. A beleza, aquela beleza profunda, do tipo que afaga os ânimos do mais exaltado entre os raivosos, só o homem pode sentir. Mesmo que chegue a prescindir do uso de seus cinco sentidos. Ele sabe fazer e apreciar uma boa música como nenhum outro animal. Consegue reproduzir a lua e as estrelas tão fiel à realidade como eu seria se me casasse com a Emma Watson. É capaz de cozinhar uma refeição de sabor indescritível e aproveitá-la como ela merece. Ou alguém já viu algum cão por aí fazendo questão de comer uma carne sem nervo ou um X-Bacon sem ovo e sem salada? Há a exceção daqueles muito bem prendados cachorrinhos de madame, que fazem cara feia se o champignon do lanche da tarde veio com sal além da conta. Eles são a exceção da regra: apreciam (de uma maneira bem fresca, é verdade) o belo, mas tão somente porque são cachorrinhos de madame.
É a busca implacável pelo belo e pelo que ele faz sentir que move a humanidade. Esclareça-se de vez: não se fala da beleza galã-de-novela-das-oito ou da formosura estética de um quadro de Monet. Fala-se também delas. Pois cada um tem para si um modelo de beleza – o que explica o gosto duvidoso de pais cujo primogênito chama-se Josicleiton ou Edivânderson – e buscará tê-lo sempre em sua volta. Por isso é que tem gente que prefere música clássica a forró e vice-versa. O conceito máximo de beleza é aquilo que não impediria Mozart de convidar uma morena para dançar ao som de Luiz Gonzaga. Talvez a muito provável falta de aptidão biológica para rebolar do austríaco o fizesse, mas não o conceito-mor de beleza.
É aí que me lembro da história do Márcio. Da época que ele era Marcinho.
O Márcio era filho de um mecânico lá de perto da rua. O conheci porque sou da época em que as crianças falavam mais e digitavam menos. Era apaixonado, doido de pedra por uma loirinha também das redondezas, tão bonita quanto seu nome lhe era inapropriado: a Gerdalva. Embora ele nunca houvesse confessado ou mesmo falado a respeito - assim são os homens -, todos da turma sabiam que ele era louquinho pela Claudinha. “Claudinha” porque até então não sabíamos seu nome e, ao contrário de sua mãe, tínhamos mais tato para eleger nomes de meninas atraentes. Seu único problema era o desinteresse que jorrava de sua expressão, como se nada no mundo pudesse lhe chamar e manter a atenção por mais de quinze minutos.
Jogávamos futebol num terreno que atualmente é mais uma loja de móveis daquelas que nunca tem alguém comprando, mas parecem existir desde sempre. Mas essa só parece, pois ali o Márcio, eu, o Juninho, o André Cabeção e tantos outros praticávamos a arte e a luta (no meu caso, zagueiro clássico, mais luta do que arte) do esporte bretão. E o Márcio era um craque de bola. Muita gente jurava que ele ia virar um profissional dos bons. Falava-se até em seleção, fama, o pessoal da rua sendo entrevistado após ele ser vendido à Roma (sou da época que a Roma inspirava admiração e respeito, tanto que ninguém errava seu gênero), esses eventos todos que acompanham um jogador meia boca hoje em dia. Mas o Márcio tinha um problema: não ajudava a marcar nunca.
-Volta, Márcio! Marca o Pelezinho!
E o Márcio não voltava. O Pelezinho, muito embora seu apelido não sugira, era mais branco que uma nuvem de verão. Mas essa já é outra história.
-Marca o Pavão, Márcio!
Naquela vez, a voz não veio do campo. E era mais fina que o padrão dos jogos de pelada. Era a Claudinha. Chovia muito, e ela teve que se abrigar na tenda que improvisamos para termos uma sombrinha. Brasileira que é, aproveitou para acompanhar o cotejo. E o Márcio a obedeceu. Correu como um louco, tomou a bola do Pavão, tabelou comigo, driblou um, driblou dois e quase fez um golaço de cobertura. O André Cabeção até hoje jura de pé junto que um raio atravessou os céus em sinal de espanto no exato momento em que Márcio começou a correr.
Delírios à parte, o Márcio, desde então, começou a marcar. E ficou bom nisso. Foi um dos meias mais completos entre os que nunca se tornaram profissionais. Tínhamos mais idade e menos interesse em jogar futebol todo dia quando ele decidiu ir abordar a Claudinha. O intento pode ser resumido em uma fala da já muito bem torneada moça:
-Ah, Márcio, você é bonitinho, fala bem, sabe jogar bola como ninguém, mas sei lá... Futebol não dá futuro. Meu pai mesmo diz que é coisa de deliquente, de desocupado. Que eu tenho que buscar um rapaz de cultura, sabe? Alguém que combine com um terno, com um óculos de leitura.
Márcio, é claro, abateu-se tremendamente. Ficou tão consternado que esqueceu-se: a Claudinha fora criada pela mãe. E nem tinha padrasto, tio, avô ou qualquer homem que pudesse inspirar o trato paternal. Largou, aos poucos e sob inúmeros protestos (inclusive os meus), o futebol. Trocou a bola pela caneta, as chuteiras pelos livros e o tempo treinando lançamentos pelo de aula – que aconteciam, aliás, no mesmo horário.
Continuou a conversar, volta e meia, com a Claudinha. Ele era, mesmo, doidinho por ela. Ela comentava que gostava de uma música, ele aprendia a tocar violão e a dançar. A Claudinha citava uma passagem de um autor, o Márcio lia três livros do tal escritor. Dizia que gostava de filé com fritas, ele aprendia a fazer picanha com batata recheada. E assim seguiu. Teve até namoricos com outras garotas, mas sempre pensava na loirinha da rua. Imaginava se ela teria ciúmes se soubesse que ele perambulava com outras moças pelos cinemas e bares da cidade. Até que, finalmente, começaram a namorar. Poucas vezes eu vi um rapaz tão realizado. Feliz e careca: ele recém tinha passado no vestibular para uma engenharia de nome difícil, mas que dá dinheiro.
Pobre Márcio. Mês e meio depois, a Claudinha, aquela miserável, o deixou. Sem nem dar um tchau, deixou uma carta com dois parágrafos e péssimo português dizendo que nunca quis nada com ele e não poderia prosseguir (palavra que ela escreveu com cedilha) num relacionamento assim. Márcio, coitado, ficou arrasado. Claudinha, bandida, agora sim merecia chamar-se Gerdalva. Maldita: sempre fora Gerdalva, nunca Claudinha!
E aqui reside o ponto principal da história. Ao tanto buscar a beleza de Gerdalva, descobriu outras belezas. O dom da música, o prazer da boa literatura, o prazer concentrado num contra-filé mal passado. Tornou-se belo ele mesmo ao tanto tentar alcançar não exatamente a beleza física da Gerdalva, mas o sentir-se bem que move a humanidade. Isso que o motivara e o fizera entender melhor o conceito máximo do qual falei mais acima e como o mundo pode ser belo por mais desagradável que seja.
Márcio formou-se com louvores, casou-se com uma morena espetacular e hoje mora numa casa simples, de muito bom gosto, perto de onde morávamos todos. Combina com um terno e com um óculos de leitura do mesmo jeito que com uma regata e um par de chinelos de borracha.
E a Gerdalva? Bem, a Gerdalva voltou a ser Claudinha. Deixou de ter aquele seu olhar desinteressado habitual quando resolveu ser pintora e encontrou sua vocação. Foi num belo dia de chuva.