domingo, 21 de agosto de 2011

A linha e as linhas

O homem entrou no ônibus e pensou: "interessante lugar, esse ônibus". Corrigiu logo depois: "interessantes lugares, os ônibus em geral"; finalizou: "seria mais interessante se eu não tivesse que ir em pé nesse aperto". Mesmo quase sufocado e sabendo que seu trajeto demoraria cerca de hora e meia, caiu-lhe a ideia de atribuir nomes e perfis para alguns de seus companheiros de viagem. Ajudaria a passar o tempo. Olhou para um moreninho e seu subconsciente o alertou que ele provavelmente teria um nome como Josyvaldisson ou Welynnton e que seria melhor ficar longe qualquer que fosse seu nome, mas logo o seu consciente retrucou e disse que isso era racismo. Racismo é crime, pensou, e julgou que seria mais conveniente para si que o chamasse de Valdir, um bom menino que trabalha para ajudar no sustento da mãe e do irmão. Tinha uma cara pensativa, como se estivesse a tramar uma ideia ou recordando algum acontecimento do dia em detalhes, o que provavelmente não foi possível fazer no momento exato do fato, por qualquer razão que aqui não cabe especular. Como estava razoalvemente trajado, nosso amigo cansado e em pé não titubeou em supor que ele estivesse voltando do cinema - o que seria bem possível, dado que nunca se viu uma cidade com tantas salas de cinema como aquela.

Tinha cara de quem curte filmes de ação, o Valdir - assim como a maioria dos homens desse planeta que curtem filmes. Sua feição, porém, não parecia relembrar o feito heroico do personagem ou a beleza da protagonista (que provavelmente não seria de se jogar fora, como normalmente não é; muito pelo contrário, seria uma conquista digna de troféu para qualquer homem - ou mulher, nunca se sabe nesses dias), mas estava ateado a um detalhe da película: possivelmente, o prejuízo que têm as lojas nesse gênero da sétima arte. Ou melhor: a quantidade de vitrines e de lojas com vidro que insistem em aparecer nas cenas mais agitadas. Por que diabos o mocinho tem que causar tanto prejuízos a terceiros que nada têm a ver com sua causa? Tudo bem que ele quer salvar o mundo ou, ao menos, os Estados Unidos, mas um "com licença" ou uma dose a mais de cuidado não faz mal a ninguém.

Minha vó me dizia muito isso, pensou o homem, enquanto olhava uma senhora sentada perto da metade do veículo. Indagou-se: será que eu pensei nisso porque minha querida avó me ensinou bem ou por que esta senhora e seus cabelos brancos me fizeram associá-la com minha vó? Não faz mal, lembrou-se, o que mais lhe cabe no momento, o que mais atende sua tarefa atual, é traçar um perfil da mulher. O primeiro a se fazer era dar um nome à velha. Gertrudes foi o primeiro nome que seu subconsciente apontou. Como não existe racismo com os mais velhos, poderia curvar-se a esta intuição sem maiores problemas. Até porque, realmente, Gertrudes é nome de velha. Tinha cara de quem estava ali a força, como se o transporte coletivo fosse sua última opção. Provavelmente sente saudades da época em que suas pernas aguentariam a caminhada sem problemas, pois, se é pra chegar suada em um canto, que ao menos se queime algumas calorias a mais com isso. Tentou usar um táxi, mas desistiu ao notar que não teria dinheiro para tanto, já que fora assaltada um dia antes e sua aposentadoria estava atrasada. Maldito governo, sempre cobra, mas nunca cumpre. Ter que pegar um táxi a fez lembrar de certa vez que notara a incrível semelhança entre as vozes das operadoras de táxi: sempre uma voz levemente fonha, disfarçada pelo ruído do rádio. Será que cobram isso nas entrevistas desse emprego? A velha tinha cara de quem tem ou já teve, no auge dos tempos de fofoca, uma voz dentro desse perfil. Até que seria uma boa, para ela, tentar esse emprego, já que o governo não é lá muito generoso na quantia mensal da qual retira seu sustento.

O ônibus deu uma freada intensa. Bastou essa quebra de movimento linear para nosso protagonista também quebrar seu raciocínio sobre a simpática Gertrudes, sua voz fonha e seu possível futuro emprego que conseguiria graças a esta característica. Escolheu um outro alvo, mas não antes de perceber que um local vago lhe esperava - o que preferia não ter feito, já que foi rapidamente ocupado por um rapaz com um fone de ouvido. Ladrãozinho, pensou, não merece minha atenção. Com a certeza de que o insolente que lhe roubara o lugar não seria o próximo alvo, prosseguiu em sua missão. Depois de Valdir e da velha Gertrudes, faltava um velhinho e uma moça para completarem-se dois casais, destacou. Como sempre fora um romântico, daqueles bobos o suficiente para ouvir canções adolescentes de amor até os 60, resolveu seguir a ideia. Achou uma moça de beleza: poderia até interpretar a mocinha no filme de ação recém visto por Valdir tranquilamente. Quer dizer, pensou nosso amigo, nem tanto, essa aí tem cara de quem vive atrás de um namorado por puro desespero, não por vontade. Tem jeito de ser daquelas grudentas, que acham que o mundo gira em torno delas e que homem bom é o homem dos seus sonhos. Quanta ingenuidade, lamentou nosso companheiro: ela provavelmente pensaria assim até o dia em que descobrisse que aquele não era seu sonho, mas de toda uma tropa que não percebe o que a palavra sonho significa - ou que nem mesmo tem a coragem de conferir num dicionário. Malditas canções pop, disse-lhe o subconsciente. Não estava errado desta vez, esse racista preconceituoso com idosos: talvez as músicas ouvidas pela garota (que se chama, por acaso, Cíntia) reflitam e ao mesmo tempo sejam o mal de toda uma geração. Essa necessidade de encaixe tão natural ao homem - no caso, à moça -, tão essencial, mas que dota o malfeitio de moldar-lhe como um ser voltado a um fim e não a si.

Maldita Cíntia, fez-me filosofar em um ônibus lotado, pensou Afonso. Sim, nosso querido amigo chama-se Afonso, nome que é fruto da falta de sinônimos e da aparente falsidade que é chamar alguém de amigo ou querido quase que de forma constante. Maldita não, complementou, afinal fazer filosofia num ônibus deve ser raro nesses dias, o que faz de mim um privilegiado. É uma querida, essa Cíntia.

Faltava o par da dona Gertrudes. Não que ela estivesse ainda no estado de espírito cujo principal objetivo fosse buscar um companheiro - como está a bela e já analisada Cíntia -, mas um parceiro, nessa idade, é sempre útil, seja para jogar uma conversa fora ou para estabelecer uma amizade que não duraria tanto quanto desejariam. Infelizmente, parece que era ela única pessoa acima de 60 no ônibus. Afonso tinha lá seus 40 e tantos, mas para si já lhe bastava sua mãe querida e algumas tias de idosos com quem manter amizade e afeto. Notou um homem no qual caberiam, tranquilamente, uns 50 e tantos. Ufa, a velha não fica contigo, disse-lhe seu inconsciente, ácido e sagaz como de costume. O homem, de nome Carlos, era a figura da burocracia: camisa social, cabelo encebado de gel penteado para o lado, a disfarçar-lhe as entradas da calvície, óculos de armação grossa, barba e bigode bem feitos e uma testa grande e enrugada. Provavelmente é daqueles que sabem tudo, mas não sabem nada. No trabalho são de grande utilidade por seu conhecimento, fruto de uma longa vida de estudos bancada pelos pais, aos quais oferece sua presença na ceia de Natal e algumas ligações telefônicas em aniversários e em datas especiais como forma de retribuição e pagamento. Pobre homem, pensou Afonso, julga que tudo nesta vida é uma transação. Nunca deve ter tido uma discussão com os pais: não por falta de motivo, mas porque, normalmente, é mais conveniente fingir que está tudo perfeito, fechar a boca e aproveitar o silêncio do que arriscar a quebrá-lo e não gostar do que se ouve depois disso, mesmo que os ouvidos já pressintam o que seja. Normalmente, julgou Afonso, este tipo divide-se em dois: ou é um ingênuo, que crê no sistema e no próprio ser humano, feito à imagem e semelhança de um ser supremo e bondoso, ou é um pilantra, que se aproveita dos ingênuos e nega a tese de que todos descendem de um ser com tamanha bondade. De qualquer forma, Afonso não é de sair com nenhum desses tipos por aí. Fazia mais o cético utilitarista-divertido, aquele que acha que não adianta lutar muito por grandes causas, o que importa é aproveitar os momentos que estão aí para serem aproveitados.

Passou o tempo. O ônibus foi mais rápido do que o costume, o trânsito estava gentil. Chegou o fim da linha, finalmente, para Afonso. Linha, palavra engraçada, pensou, finalmente, Afonso. Talvez a vida, não só ela, mas toda a existência, seja tão sem rumo quanto um emaranhado de linhas e quanto as aletórias linhas de pensamento que neste ônibus foram tecidas. Pensamento presunçoso, concluiu, pois esta linha de ônibus é a mesma desde que se dava por gente. Não lhe importava agora saber se há ou não um insconsciente tal qual o seu, cheio de ironia, por trás disso tudo: o que realmente queria era se livrar desse aperto e descansar as pernas.