terça-feira, 16 de abril de 2013

parai, chão

não sou o que fui
nem o que sou.
não sou o que era
pois ele acabou.
não vejo o que flui
e, quando vejo, passou.
para-o-chão fito os olhos
e na distração embarco.
perdido, me acho.

domingo, 7 de abril de 2013

angústia nossa de cada dia


Ela estava sentada na praia há um bom tempo. Não sabia precisá-lo em minutos ou horas, só que passava um largo período ali. Encontrava-se de costas para o mar porque olhava, com curiosidade, dois velhinhos: o primeiro, mais sentado na bengala que no banco, a corcunda acusando que a gravidade é mais forte que ele jamais havia suposto. Usava um daqueles chapéus em forma de côco típicos da terceira idade, óculos de haste escura e um colete cinza por cima da camisa branca. A segunda, aparentemente mais jovem, sentada num banco com encosto, vestia um sobretudo com jeito de que já fora elegantíssimo e mexia os próprios lábios com o indicador esquerdo, protagonizando um gesto bobo e contraditoriamente pesado. Rita não conseguia sair dali. Nem se lembrava do livro que trouxera para ler ao som do oceano naquele meio de tarde nublado. Tampouco se dava conta dos ruídos marítimos: estavam ali ela, o silêncio e os dois velhos.
O que mais estarrecia a moça jovem, relativamente bonita, cabelos curtos, meio gordinha – culpa do último namorado, que, além de galinha, era rico e a levava a ótimos restaurantes toda vez que renovavam o relacionamento – eram os olhares dos dois: pareciam o mesmo. Vazios. Semelhantes ao de um cachorro entediado após a morte do amado dono, como se os seus corações houvessem petrificado embora continuassem atravessáveis por pequenas doses de água. Corações de pedra, mas férteis. Protegidos pois, caso contrário, explodem.
A angústia crescia em Rita. Não queria ter um olhar vazio na sua velhice. Tinha planos, metas, amigos solícitos a ajudarem quando bem necessitasse,  livros a ler, filmes a assistir. Como alguém pode, depois de viver (ou poder haver vivido) tanto, ter um olhar sem conteúdo? Aquilo não iria ficar assim. Calçou as sandálias, limpou-se da sempre inconveniente areia de praia e levantou-se.
-É complicado, querida.
Rita decidira falar com o velho – que tinha cara mais simpática – com uma abordagem do tipo “tá um vento forte hoje, né?” e passaria a tentar obter suas respostas com perguntas sutis, mas profundas como a recém feita “esse ano tá passando muito ligeiro, não? Parece que o Natal foi ontem...”. Pela resposta do seu Odair (logicamente, perguntara seu nome), aproximava-se de seu objetivo.
-Como assim, seu Odair?
-Essa questão do tempo, sabe... É muito difícil. Tanto que todo mundo tenta explicá-lo por metáforas, parábolas e tudo mais. Nunca chegam pra dizer o que o tempo é exatamente, só sabem apontar e dizer que o tempo é aquilo.
Rita fez uma expressão de aluno de ensino fundamental em aula de cálculo 2. O velho emendou, sempre falando pausadamente, voz grave e levemente rouca como a de qualquer ancião:
-Agora, por exemplo. Você falou do Natal e que o ano passa rápido. Essa é a coisa mais óbvia sobre o tempo: ele passa. Mas as pessoas, ao invés de falarem “o tempo passa”, preferem apontar para as espinhas dos netos. Pensam naquilo, sabem o que é, mas preferem dar exemplos, puxar outro assunto. Acho que isso é próprio da humanidade. Temos tanto medo que o tempo passe que perdemos tempo sem saber o que fazer dele.
-E aí vivemos a angústia nossa de cada dia.
Odair sorriu. A garota realmente prestava atenção.
-Isso, isso.
Prosseguiu:
-E vou te contar uma coisa: eu podia ter sido um dos grandes. Todo dia eu venho aqui e acabo por pensar nisso. Sempre gostei muito de música, especialmente de jazz. Você gosta, Marta?
-Rita.
-Quê?
-O meu nome é Rita, senhor. Mas gosto sim.
Rita mentiu. Achava o jazz muito paradão, ritmo em excesso pra pouco movimento. Não que ela entendesse de música e soubesse o conceito de ritmo ou movimento: só não se digladiava ao escutar o ritmo nascido nos bares de Nova Orleans.
-Ah, perdão. Esse assunto me deixa desnorteado. Pois bem. Eu era muito bom no saxofone. Tão bom que fui convidado a ir para os Estados Unidos. Eu sabia tanto de inglês quanto os jovens hoje entendem de música – Rita riu –, mas há linguagens que dispensam a fala. O olhar, o gesto e, para mim, a mais bonita delas: a música instrumental.
Seu Odair perdeu-se em seu olhar mais uma vez.
-E o senhor foi? – Rita tentou retorná-lo à realidade. Num pequeno estalo, ele respondeu:
-Ah, sim. Quer dizer: não. E o melhor: não sei se me arrependo. Embora eu pudesse haver sido um sucesso, aqui eu fiz uma boa vida. Não devo nada a ninguém, trabalhei honestamente, tenho bons filhos, netos inteligentes – o velho lembrou que um deles estava solteiro e que Rita não era de se jogar fora, mas preferiu deixar o assunto para depois – e tudo que sempre almejei.
-Mas será que lá você – Rita já se considerou íntima o suficiente para tratá-lo informalmente – não teria tudo isso? Digo, eu mesma conheço gente que foi para a Europa, Estados Unidos e até Paquistão – ela tinha um tio, conhecido como “Evandro, o Doido”, que decidiu, do dia para a noite, morar no Paquistão – e que se deram muito bem.
-Essa não é a questão, querida. Tudo pode acontecer. Mas sempre fica aquele “e se”. Nunca me esqueço de quando meu primeiro filho disse aos seus 10 aninhos de sabedoria que o pudim só era gostoso daquele jeito porque todo dia tinha frango com purê.
Faz sentido, pensou Rita. Odair prosseguiu:
-O que eu quero dizer, minha filha – velho tem mania de chamar qualquer um de filho – é que nada volta. Vi muita gente passar a juventude fazendo coisas de velho para chegar na velhice achando que ainda são jovens. Até chapinha de chocolate fazem. Fazem o que não querem para depois fazerem o que já quiseram. Só se vive uma vez dos 17 até os 33 anos. Ao mesmo tempo, não dá pra fazer tudo o que se quer, senão você nem chega aos 25. Sobremesa é bom, mas quem só come pudim fica desnutrido e gordo. E não dá pra fugir disso: a vida é uma mistura do que podemos com o que devemos fazer dela com uma pitada de nós mesmos.
-Você gosta de uma metáfora com culinária, né? – perguntou Rita, sorrindo. Odair soltou uma gargalhada.
-É que na velhice você arruma tempo pra cozinhar... – seguiu gargalhando. – Na verdade, de culinária gosto, mas, como já te disse, não aprecio tanto assim as metáforas. Elas tornam a explicação mais fácil, mas não explicam muito. Pessoas pensam em conceitos máximos sobre a existência e o tempo, mas não os enunciam, talvez com medo de que sejam verdade. E a verdade final é inconveniente: tudo acaba. Você, eu (provavelmente antes), aquele cara de pau ali que não limpou a sujeira de seu cachorro, esse mar, o agora e mesmo o que nem existe. E, se existe o belo, é porque existe o feio. Cabe a cada um buscar o que lhe convém e interessa, senão, num estalo, estará velho e sentado na orla da cidade, sem amigos ou confidentes.
Rita estranhou. Não era ele quem estava satisfeito com a vida pacata que levara? Odair sorriu para continuar:
-Mas também se poderá ser um velho solitário e realizado. Questão de perspectiva.
A moça estava boquiaberta. Nem reparou que já estava escuro. Odair, sim:
-Querida, muitíssimo obrigado por me ouvir e fazer companhia. Vocês, jovens, às vezes são muito imediatos, querem tudo e não conseguem nada. Falta mistério. Mas isso é assunto pra outro dia, não? Já está tarde, minha esposa deve estar preocupada.
Rita concordou, despediu-se e prometeu, após muita insistência, adicionar o neto de seu Odair, Martinho, “numa dessas conversas de computador aí”. Estava tarde e sentia fome. Foi a pé para casa, pensando nas falas daquele senhor da fala mansa e firme. Chegou em casa e sua mãe, de longe, disse:
-Ah, ainda bem, Rita! Chegou na hora do jantar! Venha pra mesa, tá tudo quentinho!
Rita não respondeu, foi até a cozinha e a beijou. Lavando as mãos e com o estômago doendo, perguntou:
-Mãe, o que tem pra jantar?
-Frango, purê e salada.