segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A uma primeira vista

A uma primeira vista, Fernandinho era mais um adolescente rebelde. Mais um dos que escutam uma música com crítica social e acham que descobrem o mundo e toda a verdade além dos cabos de televisão. Outro que que escuta uma teoria da conspiração e a leva em conta pelo resto da vida como parâmetro para fugir do óbvio - não é possível que não percebam que ninguém é tão competente a ponto de esconder uma farsa mundialmente durante um longo período. Mas Fernandinho tinha uma razão nas suas dúvidas. Partindo da única premissa certa que existe nesse mundo – a própria existência -, chegou à questão fundamental: pra quê isso tudo? Por que diabos tanta gente busca tanto mais do que precisa? E por que tantos precisam mais do que buscam?

Tentou responder essas dúvidas de tudo quanto foi jeito. O primeiro, quase um reflexo humano para se responder ao que se tem muita preguiça para entender ou pesquisar, foi atender ao instinto religioso. Não deu certo: teria que partir de premissas que não sabia se eram tão verdadeiras quanto a que usara para ter essas dúvidas. Depois, tentou absorver as respostas de outras pessoas. Fez amigos, apaixonou-se, quebrou a cara. Virou um cético, o que era facilmente percebido quando se prestava atenção ao seu olhar vago nos momentos de silêncio. Porque o silêncio era um particular inspirador a procurar um rumo. Porque quando nada se escuta, se pensa. Mas a maioria das pessoas só pensa no que vai escutar a seguir. Fernandinho, não. Tentou se desapegar do sensorial. O problema era que, fazendo isso, não sentia mais nada. Como pensar sem sentir? Não há como encarar o mundo sem vê-lo, tocá-lo e cheirá-lo. Não há sentido em não ter sentido – é isso que dá algum rumo à vida.

Um dia, finalmente, Fernando desistiu de sua busca. Resolveu não dar mais corda para sua constante e reincidente curiosidade. A partir daí, criou uma espécie de medo da verdade. Via o envelope da fatura do cartão e se recusava a abrí-lo, como se aquilo de certa forma fosse desaparecer ou como se a conta fosse ser paga magicamente – esta seria a opção preferida do nosso amigo, pois, afinal, ele continuaria a ter uma televisão fantástica que comprara em 16 parcelas, semanas atrás. Tinha pensamentos a falar, textos a escrever e problemas a resolver, mas simplesmente não fazia nada disso. Ao contrário, era muito melhor desviar sua atenção para algum filme, livro, festa ou qualquer outra atividade (mesmo que patética) capacitada a lhe distrair de algum pensamento perturbador por um tempo razoável.

Mas acontece que o mundo é feito de ciclos. Se alguém foge de algo, há uma grande chance de se re-encontrar com aquilo – especialmente se o alguém em questão não for muito chegado a viajar. Fernando percebeu isso de uma forma meio esquisita: quando olhou para sua lâmpada e lembrou da sua pasta de dente. Imaginou se o flúor que estava na sua pasta de dente já tinha ajudado a iluminar um ambiente em que estivera. Pensou: como diabos algumas partículas de uma lâmpada queimada poderiam parar em seja lá onde se arruma flúor para colocar nas pastas de dentes e voltar a alguém que já iluminara – com o bônus de lhe dar um hálito mais fresco?

Tudo bem que lâmpadas fluorescentes não contêm flúor, mas Fernando tinha um ponto. Percebeu suas opções. Poderia continuar buscando distrações até o dia em que sua morte chegasse para não ficar aborrecido demais com a espera ou realmente fazer alguma diferença nesse grande caldeirão de átomos e moléculas que é o planeta. Ser, com o perdão do erro científico, o flúor que iluminou alguém e ainda voltou para embranquecer seus dentes. E nem precisaria ser tão pretencioso a ponto de se fazer uma diferença no mundo. Bastava fazer diferença para si. E, como tudo é um ciclo, essa diferença iria se espalhar e mudar algumas coisas até que ficasse pequena demais para se destacar. Mas isso é bom: acontece também quando se faz a diferença negativamente. A sujeira, por mais imunda que seja, se fragmenta e, antes que se perceba, tudo vai parecer limpo de novo. Ela se espalha, embora nunca tenha deixado de existir.

Foi bom para Fernando perceber isso. A partir desse momento, levantou-se e finalmente achou seu sentido. Que tudo do que ele é feito e tudo o que ele faz deveria, ao menos, tentar ser lembrado como bom. Que seus netos, bisnetos ou, quem sabe, tataranetos - no caso de alguma gravidez não planejada -, o lembrassem como um cara legal. Ou que, ao menos, suas moléculas fossem parar, digamos, num sutiã.

A uma primeira vista, Fernando é só mais um cara que quer ser um sutiã.