domingo, 7 de junho de 2015

o menino no shopping

Matias não sabia se era sortudo ou azarado. Órfão de mãe e abandonado pelo pai, viveu na rua até encontrar o Sr. Raul, homem de idade e vigia de um shopping center da imensa cidade de Nunci, numa noite escura de quinta-feira. Naquele dia, a cidade estava vazia em decorrência das comemorações pelo carnaval, que provocava êxodo massivo e dava a oportunidade a moleques de catorze anos como Matias perambularem pela cidade à procura de uma esmola ou uma alma gentil.
Quando a noite iniciava, Matias teve azar: enquanto sentava e olhava para o céu nublado, um carro passou por uma poça d’água vizinha e o ensopou. Já encharcado, jogou mais água em sua roupa, pois chorou incessantemente. Havia fugido do orfanato há quase três meses e agora estava magro como um cão faminto. Não se arrependia, pois era maltratado na instituição, nunca gostou do ambiente e se dizia que dali não saía sujeito que se preze. Só sentia falta da comida na mesa.
Nesse momento, o Sr. Raul chegou ao seu lado. Tinha mais de 70 anos e uma aparência condizente com os anos vividos, mas se movimentava com grande agilidade e força. Falou com o garoto.
-Meu querido, por que está chorando?
Matias não respondeu.
-Você está bem magro, deve estar com fome. Venha comigo pra eu te dar um sanduíche. – O velho sentiu a relutância do menino. – Tudo bem, então. Não quer um hambúrguer? Acho que mais tarde você se arrepende... Até logo!
O Sr. Raul escutou o “Ei!” após cinco passos. Não falaram nada além de um “esse” seguido de um olhar guloso e um “o que é acelga?” até Matias terminar o sanduíche. Já alimentado e confiando no homem menos porque ele o pagou um sanduíche e mais pela forma com que era tratado, o garoto pôde explicar de onde viera, como perdera a mãe, que o pai o abandonara e por que saíra da casa de órfãos. Em vinte minutos, já eram amigos. Foi aí que veio a proposta:
-Olha aqui, menino. Tá vendo aquele prédio ali? – apontou para o imenso shopping. – Eu sou vigia de lá. Toda noite trabalho da meia noite até as oito da manhã. Não posso leva-lo para casa, já crio quatro dos meus netos e minha mulher não aceitaria, mas garanto que você não fica sem teto durante a noite. E, se estiver com fome, sempre posso trazer um lanche. O que me diz?
O menino poderia ter perdido aquela chance por não haver reagido. O Sr. Raul o empurrou e o conduziu até o grande edifício branco. O velho mandou Matias ficar perto de uma grade, afastou-se alguns metros e passou muito tempo gesticulando e falando com seus colegas vigias, aparentemente os convencendo que o menino era inofensivo. Sob muita relutância, aceitaram a presença do garoto, desde que sob sua supervisão em tempo integral.
Matias não sabia que algum teto poderia ser tão alto e que tantas cores conviveriam com letras, desenhos, cartazes e placas dos formatos mais diversos. O silêncio do lugar lhe trazia uma paz que talvez nunca havia sentido até então; o eco causado por um pequeno passo fazia-lhe imaginar o barulho que predominava durante o dia, quando centenas ou milhares de pés sapateavam pelo chão, com um rumo certo ou apenas vagando em busca de um caminho ou, simplesmente, de um sorvete gelado.
A cada semana cujas noites Matias passava no shopping, crescia sua curiosidade sobre o gosto dos sorvetes. Foi aí que ele decidiu fazer uns bicos no centro da cidade durante o dia para, finalmente, poder comprar durante o dia uma daquelas maravilhosas casquinhas dos pôsteres: não eram tão grandes e majestosas como esperava, mas tinham um gosto divino. Aos poucos e com a ajuda do Sr. Raul, o moleque conseguiu roupas novas, arrumou lugar pra trabalhar passar o dia – um estacionamento de um amigo do Sr. Raul – e vinha engordando. Matias não revelava isso a ninguém, mas tentava dormir durante o dia para poder andar pelo shopping na noite que, para quase todos, era vazia e morta. No absoluto silêncio, Matias conseguia escutar tudo aquilo que pensava. Eram as melhores noites de sua vida.
Fazia mais de dois anos desde que o Sr. Raul e um encharcado Matias se encontraram na rua escura. Tudo ocorria dentro do previsto: agora matriculado numa escola, o garoto auxiliava no estacionamento durante a tarde e seguia religiosamente para o shopping às 10 da noite. Certa vez, os vigias não o deixaram entrar. Perguntou o motivo e lhe riram na cara. Dormiu na rua aquele dia.
A sequência se repetiu por mais duas noites, quando o garoto percebeu que não sabia sequer onde o Sr. Raul morava ou qualquer forma de conseguir notícias do amigo. Os vigias do shopping, que nunca gostaram da sua presença por lá, já estavam mais agressivos: não respondiam nada sobre o velho e proferiam ameaças caso houvesse insistência. O que se passou com o Sr. Raul? Por que ele nunca lhe dissera sequer onde morava? Matias se enfurecia até que o pensamento da possível morte do velho passava pela sua cabeça e lhe amolecia os nervos. Será que tinha sido novamente abandonado?
Preferiu pensar que não. Decidiu conforme certa vez já havia pensado no meio daquele salão de teto alto: só a morte o impediria de ver novamente o Sr. Raul, seja ela a morte do velho ou a própria, que extinguiria seus pensamentos e inúmeras imagens daquele senhor de andar rápido e alegre. Naquele momento, voltou a questionar se tinha sorte ou azar ao perder o amigo daquele jeito. Decidiu, então, ir à lanchonete de dois anos e pouco atrás, pediu novamente o hambúrguer com acelga, o devorou e saiu em busca de um teto para a noite. Matias escolheu ter sorte.


(Texto de julho de 2014)

Nenhum comentário:

Postar um comentário