quinta-feira, 29 de novembro de 2012

carta de um velho




Não é fácil ser um velho. Principalmente condenado à solidão, como o que vos fala. Hoje, pela última vez antes de me manifestar a respeito, senti-me vulnerável à morte. Pude presenciar a fragilidade da vida. Ah, o quanto eu daria por um corpo novinho! Será que nunca inventaram transplante de cérebro? Por que tenho que estar preso a este fraco corpo, sujeito, desde que eu nasci, a acidentes, doenças, balas e que é, às vezes, refém de si mesmo? Quão magnífica seria a humanidade se feita de imortais! Ou nem isso: peço, somente, cérebros imortais. Inventem uma máquina capaz de oxigenar e nutrir os cérebros das grandes mentes humanas, permitindo que se expressem! Já inventamos máquinas que nos fazem voar, nadar, sair do planeta e ver outras galáxias que os bisnetos dos nossos netos nunca chegarão perto! Por que diabos não inventamos a máquina definitiva, aquela potente o suficiente para driblar o nosso único tormento, a nossa única certeza e, ainda assim, o único motivo para querermos aproveitar os dias que nos restam? Porque sim, estes dias estão contados, mas temos um problema: ninguém desvendou tal matemática!
Perdoem os devaneios deste velho solitário. É que já quase não tenho forças para me levantar. Um dia, quando estiverem todos velhos – pois este dia chegará aos mais afortunados -, alguns hão de me entender. Olho para meus músculos e pergunto-me por que eles têm prazo de validade; vejo minha imagem desgastada no espelho e pergunto-me se o tempo foi o único responsável por estas rugas e cicatrizes. Sinto o palpitar do meu coração, que bate desde que estive na barriga da minha finada e abençoada mãe, e torço para que ele não pare agora. Não agora, não hoje e nem amanhã. Oh, coração, bata enquanto haja esperança! Resista até que alguém se apodere da minha sugestão e salve o meu cérebro! Aí, não mais precisarei de ti: serei só eu. Pois, se tem algo que aprendi nesses meus setenta e tantos anos, coração, é que ninguém é o próprio corpo. Longe disso: cada um é o que faz e cada um faz o que é – salvo alguns enganos, mas nada que fuja da normalidade. Nossos rostos, um dia magníficos por obra e graça da juventude, um dia virarão caveira. E aí só restará o que fizemos: filhos, netos, amores e desamores, ações e omissões. Restará o que falamos. Restará um legado – ou uma estátua, para os mais importantes. Nomes em livros de história que serão estudados e depois esquecidos ou admirados. Quartos empoeirados, saudosos da vida que antes jorrava pelos seus rincões. Fotografias descoloridas de rostos e corpos que jamais serão vistos ou repetidos – no máximo, lembrados.
Que meu corpo opere por muito tempo! Que eu seja por muitos anos o velho solitário que vos fala, cada dia mais velho e mais agradecido por ter despertado. Mais agradecido por ter mais uma oportunidade de comer uma boa carne, tomar um bom uísque e fumar algo que preste. Pois tenho certeza, e fico muito triste em admiti-lo, que há pratos que não mais saborearei. Há ruas pelas quais nunca mais voltarei a caminhar. Cigarros que sempre jurei que fosse fumar nunca estarão em minha boca. Os tantos colchões sobre os quais dormi já não sentirão o meu corpo cansado em cima de si. Livros, oh céus! Quantos livros eu juro que vou ler desde que tinha os meus quinze anos e nunca sequer os comprei! Filmes que adoro e não sei se os tornarei a assistir. Grandes amigos que perdi e perderei...
Hoje, este pobre velhote que vos fala teve o seu momento Hamlet. Mas, ao contrário da personagem, não preciso de nenhuma caveira para isso. Sempre me achei inteligente – mais porque os outros o diziam de mim do que por outra coisa. Ah, como sinto falta da minha juventude! Aquele poder incrível de achar que qualquer doença será driblada com facilidade pelo ágil espírito que temos quando jovens! Aquela sensação maravilhosa de que há tempo para o que queremos, haverá um dia em que a oportunidade de fazer isso ou aquilo chegará, como certo é o nascer do sol e o girar da Terra. Quão triste me senti quando me dei conta de que não, não há tempo para tudo. Quando percebi que a oportunidade para ir ao natal em Nova Iorque não chegará, que não poderei ir curtir o carnaval do Rio, que não posso mergulhar com os golfinhos da Nova Zelândia, e se lá existirem golfinhos - de que adianta saber se não poderei conferir? Prefiro ficar ignorante, contemplar o nada, desestimular meu cérebro! Vai que, um belo dia, ele comunga com o resto do meu corpo e vira um nada de vez?
Pó eu tornarei, mas me perdoe quem disse que de lá viemos - não me lembro o nome do cristão, sinal de que minhas preces pela ignorância são ouvidas. Eu mesmo não vim de pó nenhum. Eu vim do nada. Eu era nada, até que me dei conta que eu era alguma coisa. Como me arrependo de não haver pedido que meus pais registrassem essa data! Se eu descobrisse quando foi esse dia abençoado, iria agora mesmo no cartório para que mudassem a data do meu nascimento. Porque não, eu não nasci quando era uma máquina de instintos que berrava como o animalzinho que já fui. Nasci quando me dei conta que sou eu. Quando, pela primeira vez, senti o prazer de ter um corpo todo sujeito ao meu arbítrio. Nascemos, amigos, neste momento, quando nos damos conta que temos um corpo inteiramente ao dispor de nossas consciências.
Se assim é, morremos quando percebemos que ele já não nos é fiel. Não morremos a morte morrida, aquela em que se adormece para sempre – ou seja, simplesmente voltamos ao que éramos antes de nos darmos conta de que somos algo. Quando vemos que o nosso corpo irá fraquejar, que ele está sujeito a qualquer intempérie como uma formiga está a um passo apressado e assassino. Julgamos que somos fortes, até que chega uma gripe pesada ou uma dor de dente. Um pé quebrado e dolorido que nos impede de pensar e nos coloca no chão. Que impede que nos aproximemos da divindade. Maldito seja o dia em que me dei conta disso! Em que comecei a me preocupar! Faz tempo, é verdade, mas desde então tive certeza de que pessoas pelas quais eu passo e nem sequer tenho a boa educação de lhes dar uma saudação ou desejar um singelo bom dia nunca mais tornarão a ver o meu rosto, a desfrutar da minha presença. Alguns (muitos) nem sequer me viram! Como não percebem que é uma chance única, criada por esse sacana chamado acaso, apelidado por muitos de destino?
Tudo será mais fácil quando ao pó eu for. Se a morte começa quando nos damos conta que ela existe, ela nos acompanha toda a vida. Uma bela acompanhante, diga-se! Pensem que sou louco, mas considero a morte uma grande amiga – não só uma companheira de viagem. Ou alguém tem outra definição para amigo que não alguém que lhe acompanha por toda a sua vida, momentos bons e ruins, lembrando-lhe que eles são únicos e que um dia tudo isso há de terminar? Ah, minha grande amiga Morte! Amiga verdadeira, que me dá um choque de realidade a cada momento que me recordo quem sou. Aí está outra coisa que este velhote pode ensinar: amizade mesmo é aquela que lhes diz a realidade. Ainda bem que me envolvi contigo, Morte, e não com falsas promessas de vida eterna ou de outras vidas. Pois sim, é tentador conviver com a ideia de que voltarei ou de que me libertarei deste corpo que hoje dói como se avisasse que tem prazo de validade (o que já sei desde que comecei a morrer). Respeito, porém, aqueles que não pensam assim: cada um é livre para escolher suas amizades. Só acho que amigo bom é aquele que me dá um tapa para que acorde, não o que me estupefaz a fim de me proporcionar doces sonhos - que são bons, mas irreais.
Fique claro: não é que eu não queira ver minha consciência livre do meu corpo e indo de encontro aos meus amados já ausentes desse mundo para depois esperar os que ainda irão. Torço muito por isso, aliás. Torço, mas não acredito: é como me senti em relação ao meu time durante mais ou menos metade da minha vida. Quero tanto que até agora, enquanto escrevo este desabafo como o velho que sou, não me sai da cabeça que existe a chance de que inventem a tal máquina. Chances mínimas, mas como a de eu existir! É só pensar como fui sortudo de que meu pai encontrasse minha mãe no momento certo para eu vir à tona – eu, e não uma outra combinação genética qualquer. Probabilidade tão diminuta como a de eu encontrar a minha esposa em um lugar ao qual quase desistira de ir. Tão pequena como a de meus filhos terem nascido tão belos, cópias da mãe.
E isso, meus caros, é a nossa existência: a vitória de pequenas frações de probabilidade. E o confronto constante delas com a maior das frações, tão grande que é um número inteiro: a morte. Nossa angústia existencial nasce daí, do embate entre as inúmeras possibilidades que temos frente à única certeza da vida. E aí o tempo passa e vemos que elas estão diminuindo. Então começamos a morrer enquanto elas diminuem em tal proporção que chegam a uma só. Que a última probabilidade da minha vida seja a de que inventem a máquina. Ou que ao menos a batizem com o meu nome. Caso contrário, meus feitos se desintegrarão como meus ossos e, em alguns anos, não passarei de uma fotografia descolorida. De um anônimo na história, de um velho louco que escreveu uma carta, julgo eu, bastante perturbadora. Mas que, talvez, conseguiu algumas novas amizades para minha fiel companheira.
Morte, agradeça-me por esses novos amigos da melhor forma: não venha me buscar. Pelo menos não tão cedo. Meu corpo fraqueja, mas minha mente vive. Dê-me licença, amiga, que tenho outras cartas para escrever. Livros para ler, filmes para rever, pessoas a saudar. Boa noite e até o mais próximo do nunca possível, pois ainda tenho umas possibilidades para aproveitar. Posso ser um velho, posso estar sozinho, mas uma coisa te garanto: minha torcida é pé quente. Tem dúvida? É só olhar os troféus ganhos por meu time.
Passar bem, amiga. Espero nunca te ver. Dormirei de meia. Só pra garantir.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Trigo e a cagada do pombo


Meu irmão me contou, dia desses, que presenciara uma cena que lhe causou espanto: um pombo cagando em outro. Isso mesmo: viu, com os próprios olhos, uma destas nem tão amadas criaturas urbanas defecando sobre uma de suas companheiras de espécie. E eu lhe respondi que havia um quê de poesia nisso. Supondo um universo mágico que tantos acreditam que existe, imaginei que talvez este acontecimento não fosse um mero produto do acaso. Não: foi uma grande vingança.
Tudo começa com a vida de um protagonista chamado, digamos, Trigo. Já chegou ao mundo com o fardo de ser chamado por um nome de planta. Mas se contentou: antes Trigo que, sabe-se lá, Girassol, Fruta-pão ou Joio. Apelidado de Triguinho desde os oito anos, foi um aluno mediano durante o colégio, mais por sua falta de interesse que por sua capacidade. Aos catorze, apaixonou-se por uma menina e contou isso a um amigo. Dez anos depois, o amigo e a moça se casaram após um longo e estável relacionamento construído desde a escola. Triguinho não foi sequer convidado para a festa.
Triguinho, aos dezessete, não acreditava mais em destino. Para ele, tudo era produto e origem do acaso. Por isso, parou de crer que usar a mesma cueca suja daquela vitória épica nos jogos seguintes faria o seu time ganhar o campeonato – além de ser um bocado mais higiênico. Não via relação entre a sua presença no estádio e a derrota da equipe, embora alguns de seus amigos houvessem criado a chamada “Pergunta Preventriga”, que consistia em perguntar a Triguinho se iria ao jogo para evitar qualquer estresse ou contratempo ao irem ao estádio presenciar um revés do clube.
E o ditado “azar no jogo, sorte no amor” não se aplicava a Triguinho. Depois da desilusão dos catorze anos, deixou o amor de lado e perdeu várias oportunidades de aproveitar-se do seu erro. Perdeu, inclusive, o amor de Judite, que era feia aos catorze - quando chegou a se declarar a Triguinho -, mas porque a puberdade chegaria tardiamente para a garota que viraria Judite Cardozo, famosa jornalista brasileira que, dizem, só não foi eleita a musa do ano por uma revista internacional porque trabalharia anos depois para a concorrente da publicação ou porque teria recusado um convite para jantar do editor-chefe. Na verdade, não foi escolhida porque a vencedora era mais bonita mesmo.
Triguinho teve dúvidas para escolher sua profissão. Escolheu Administração e se formou com louvores. Para um descrente do destino, um universo profissional que, ao menos em teoria, valoriza o empreendorismo agradou a Triguinho. Mas Triguinho não dava sorte. Suas ideias pareciam, simplesmente, não funcionar. Abriu alguns tantos negócios, trabalhou para algumas firmas, sempre sem sucesso. Resolveu dar-se férias: homem prudente, tinha algumas reservas para viajar por algum tempo. Deu tchau e bênção para a família e os amigos e partiu para a Austrália por dois meses, Estados Unidos por mais dois e Europa por três. Quando embarcou na aventura, tinha certeza que voltaria com alguma ideia brilhante de negócio ou produto que lhe proveria o sustento pelo resto da vida.
Mas não. Voltou com um filho, produto de uma camisinha mal fabricada e cujo recall fora feito na noite em que Triguinho consumou o ato com uma portuguesa que havia conhecido na Austrália e que havia reencontrado ao acaso na Irlanda. “Ao acaso” porque Triguinho não acreditava em coincidências. Mas a portuguesa, sim: essa foi a principal razão para que ela dormisse com o rapaz naquela trágica noite e não, como ele pensara, suas habilidades (nem tão) formidáveis na sinuca.
Anos depois, Triguinho percebeu isso. Sentado num gramado público, percebeu que, apesar de ser o acaso a força-motriz do mundo, tudo acontece por uma razão. E mais: as pessoas gostam que essa razão esteja associada a elas. E esse foi o momento Eureka de Trigo. Ali, naquele dia ensolarado, sentado despretenciosamente num gramado a três quadras de onde vivera toda a vida, teve uma ideia genial de negócio. Um estalo que revolucionaria o mercado, causaria uma reviravolta em sua vida e na de seus futuros clientes. Sorrindo, resolveu não perder tempo e ir correndo para casa, onde anotaria os pontos principais da ideia e os guardaria a quinze chaves, pois sete não eram suficientes para o prudente e azarado Triguinho. Só que, ao atravessar a rua, sentiu algo em sua careca – mencione-se que Triguinho era calvo desde os dezenove e careca desde os vinte e dois – e olhou para cima. Era um pombo. Um pombo que cagou na sua careca. No meio da rua. Peraí... no meio da rua?
E assim se encerrou a trajetória de Triguinho entre os viventes. A notícia do atropelamento trágico de um empresário e pai de dois filhos – sim, dois porque uma antiga (e muitíssimo feia) namorada o acusara de tê-la engravidado e, embora nunca houvessem transado, o exame de DNA deu positivo e Triguinho teve de assumir a criança, que conseguia ser mais feia que a mãe – não comoveu muita gente além daqueles que o conheciam. No enterro, o padre, contratado pela mãe de Triguinho, clamou que sua alma fosse bem recebida no Paraíso e gozasse da vida eterna em paz.
Mas essa não era a vontade de Triguinho. Não agora.
-Eu quero reencarnar.
-Tudo bem. Então, por favor, dirija-se ao purgatório. É no terceiro andar, uma porta grande, dourada e cheia de buracos, não tem erro.
-Mas senhora... Perdão, eu devo chamar um anjo de senhor ou senhora? Ou senhorita, talvez?
-Não importa, o que o senhor se sinta mais à vontade.
-Ok, então. É que você não entende: eu quero reencarnar como um animal.
-Como um animal? Ok, tudo bem. Mas qual? Devo alertar ao senhor que reencarnar como um cão não vem com a garantia de que receberá uma boa criação como a que acredito que o senhor deu aos seus cachorrinhos...
-Não, senhora. Eu não quero ser um cachorro. Eu quero ser um pombo.
O anjo se surpreendeu. Essa era nova. Finalmente alguma coisa além do “Paraíso, último andar”, “Inferno, espere que ônibus passe no lado de fora” e “Purgatório, terceiro andar, portão dourado e esburacado”. Teve curiosidade e, apesar do dever de manter a postura profissional e desinteressada, soltou um sorriso de canto de boca e perguntou:
-Perdoe a indelicadeza, senhor, mas por que alguém desejaria reencarnar, sabe, como um pombo? É algum fetiche, desejo antigo ou algo do tipo?
Triguinho perdoou a indelicadeza – afinal, estava em algum lugar parecido com o céu, então o perdão era algo que ele realmente deveria começar a praticar – e explicou sua história. Contou ao anjo como vinha aturando o azar e todos os acontecimentos ruins em toda a sua vida por considerá-los produtos do acaso, como conseguia acordar todos os dias e seguir em frente, como chegou a uma ideia de negócio genial e como receber uma cagada de um pombo na cabeça justamente depois desse momento e enquanto atravessava a avenida foi a gota d’água da sua paciência com o universo. Alguém tinha que sofrer por isso. E Triguinho não era estúpido de contestar as autoridades divinas bem debaixo de seus respectivos narizes – apesar de ter certeza de que estes danados se divertiram um bocado às suas custas. E achou a solução.
-Entendo, senhor, mas só por curiosidade: qual foi a tal ideia maravilhosa que teve?
E Triguinho a explicou, detalhe por detalhe.
-Nossa, o senhor tem razão. Eu mesmo viraria um cliente fiel e compraria todos os seus produtos. E olha que eu sou bom em ser fiel, heh heh... – o anjo viu que Triguinho não riu de sua piada infame para quebrar o gelo e prosseguiu – Vou ver o que posso fazer pelo senhor. Não garanto nada, é que estou aqui há pouco tempo e nunca vi um caso como esses... Só um instante.
Triguinho tinha toda a eternidade para aguardar, então aceitou a espera sem problemas. E sorriu quando, três anos depois, o anjo voltou com boas novas:
-Senhor, o seu requerimento foi aprovado. Aqui está um número de protocolo com seus dados, basta levá-lo ao sexto andar, numa porta cinza em que está escrito “Casos de extremo azar em que a cagada de um pombo causa a morte de alguém com futuro brilhante”. Bata forte na porta, o pessoal lá realmente não tem muito trabalho, estavam dormindo quando cheguei. Mas se mostraram empolgados com o seu nome e história...
E assim fez Triguinho. Com um sorriso contido, chegou à sala do sexto andar e bateu. Foi prontamente atendido e recebeu as instruções de reencarnação. Foi-lhe dito que, como caso extremo, poderia escolher entre nascer e crescer seja lá onde os pombos crescem numa cidade, ou simplesmente preencher espiritualmente algum corpo de pombo desprovido de alma. Qualquer que fosse a opção, teria sua consciência humana por um mês, quando passaria a ter uma vida de pombo normal. Ao morrer, voltaria à sede do Paraíso com a consciência final do mês vivido como pombo.
Triguinho aceitou a existência vazia por algumas semanas – que seguramente seria melhor que alguns de seus dias na Terra- e reencarnou em um corpo de ave adulta sem alma.
No começo, foi difícil aprender a se mexer, a fugir das pessoas, a voar e a lidar com a fome constante e digestão quase instantânea. Mas Triguinho estava obstinado. Esperto, voava pouco e ia a alguns locais em que havia fartura de comida. Adaptado, viu que chegou a hora.
Era um sábado de sol parecido com seu dia fatal. Precisava de uma plateia para o que ia fazer, e por isso escolheu um local que era avistado por algumas salas de aula lotadas de gente fazendo prova e, portanto, buscando inspiração – ou a resposta – na janela. E aí voou. Voou assim que um companheiro de espécie decolou em direção a uma das janelas. Adiantou-se um pouco, relaxou e deixou a gravidade agir. Tinha conseguido: um pombo estava todo melado, agoniado e tentando se limpar um pouco mais abaixo. Olhou para a janela e viu o rosto alegremente espantado de meu irmão. A missão foi cumprida. Pombos não sorriem, mas a expressão do Triguinho-pombo, ali, gloriosamente parado e apreciando a cidade sobre o prédio, era a de um pombo feliz. E não por acaso. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

a(a) cama


Nesse mundo só somos donos de nós mesmos
E das nossas camas.
Igual à  própria vida,
Modifica-se por movimentos talvez consequências de sonhos.
Igual à própria vida,
Sem zelo, vira um caos dos mais bisonhos.

Tem gente que tem cama macia
Fácil
E tem gente que se acaricia
Como se chão pudesse virar palácio.

Podemos trocar de lençol, de  cama e colchão
Mudar da fronha ao travesseiro
Mas é impossível fugir da nossa condição
E não nos entregarmos por inteiro.

A cama, como nós,
Vem em diversas formas, tamanhos e cores,
E carrega em si nossos devaneios, pesadelos e dores.
Obrigado, ó cama, por não nos deixar sós.