domingo, 4 de maio de 2025

Frida

Você chegou num dia em que minha manhã foi escura. Para os outros da nossa casa, pareceu que foi teletransportada magicamente desde Recife naquele começo de domingo. Acordei antes das 4h, pela primeira vez dirigi em uma estrada junto a meu pai, e, na volta, você veio em meu colo, já me antecipando como um certo carinho por trás da orelha poderia te acalmar. Um dia diferente e inesquecível: acordei à noite com meu pai e em algumas horas trouxemos um membro com o qual nunca havíamos sonhado.

Sua vida conosco foi amor e doação. Você parecia nunca estar triste e, nos primeiros anos, tinha energia para dois de cada um de nós, como se soubesse – e sabia... – que, no fim, o que mais importa é estar junto. E fazia questão de estar junto, sentada em nossos pés, deitada sobre nossas pernas ou se aproveitando de qualquer brecha para “encostar” em qualquer parte nossa, ainda que às custas de desconforto para alguma das partes (normalmente, a gente).

E tudo isso era amor e doação. À sua “avó”, sua pessoa preferida, a quem você idolatrava; a seu “avô”, a quem você sempre pedia comida e tampinhas; a mim, sinônimo de brincadeiras com bolas, pelúcias e qualquer outro objeto que você conseguisse abocanhar e me trazer. Qualquer um que te encontrava ganhava uma recepção carinhosa e um rebolado, como se balançasse um rabo que nunca soubemos se te foi tirado ou se de fato nunca existiu.

Acho que não houve uma vez em que estive com você em que não me senti melhor. Quando estava triste, quando estava feliz, em dias ordinários... você, mesmo na fase mais velhinha e preguiçosa, sempre se levantou e me chamou para brincar, como se soubesse – e sabia... – que a vida é o momento em que estamos, e nele devemos aproveitar ao máximo a companhia dos nossos.

Muitas vezes brinquei menos que você merecia, por afazeres “humanos”, que sua pureza não permitia entender. Mas, a cada despedida, especialmente quando passei a morar longe, sempre te dava um aperto especial, um carinho a mais. Como se soubesse – e, eventualmente, estive certo... – que poderia ser a despedida definitiva.

O que me mais dói não é só a rapidez de tudo (em pouco mais de um mês, aconteceu), mas ter te visto uma última vez em sofrimento tão severo que não reagiu à presença de duas das suas pessoas mais amadas. Ali eu vi que estava partindo. Ali, eu fraquejei em te levar logo, e nunca mais te vi. É uma ferida que carregarei e que até agora não começou a cicatrizar. Sofro por não ter conseguido fazer nada, mas, de fato, nem sempre conseguiremos proteger aqueles que amamos, e o sofrimento, infelizmente, é inevitável, em qualquer cenário.

Quase toda noite desde então eu sonho com você. Seja brincando, seja ao meu lado, como em um dos dias ordinários, mas sempre me convencendo que você ainda está conosco e que nada daquilo aconteceu. Talvez seja meu subconsciente saudoso, talvez sejam manifestações de algo maior, não sei. Mas estou certo que, em qualquer dos planos, estar ao seu lado sempre trouxe e sempre trará a sensação de viver um sonho bom.

Obrigado por tanto amor, carinho, chamego e “grude”. Você foi inesquecível, Frida. Nós te amamos e esperamos conseguir viver esse sonho em algum outro plano, em algum outro dia que comece escuro.

terça-feira, 29 de abril de 2025

anfiteatro

Prefiro o silêncio aos aplausos.


Não o silêncio absoluto e estéril do vazio,

Mas o silêncio som-de-fundo

Que permite escutar.


Escuto o que sou e o que não sou.

Escuto o que fui e o que não pude ser 

O que poderia ser e o que jamais seria.

Escuto o que me disseram 

e o que foi dito sem som.


Pois a palavra, que é dita e ouvida

Não passa de um ruído 

Se não tem o silêncio para ser pensada.

Mais vale o não dito entendido 

Do que mais um urro no alarido.


E assim sigo 

Contente por um nada

Que me faz apreciar tudo.

Estou certo:

Se os aplausos um dia me trouxerem a glória 

Será por terem sido precedidos pelo silêncio.

domingo, 31 de maio de 2020

oitavo andar

Da varanda enxergo o mundo.
Miro para baixo e
vejo a chuva castigar
as ruas que se enchem,
e os postes que parecem apagar.

É noite, mas posso ver
o mundo desde o oitavo andar.
E, já numa altura dessas,
Esqueço de para cima enxergar.

O céu está nublado,
mas vai abrir.
O céu comporta a noite,
mas o sol não deixa de existir.

Como não olho para ele,
seguirei espiando da varanda
os mesmos postes, as mesmas ruas,
o mesmo mundo,
enquanto espero a chuva voltar.

domingo, 22 de julho de 2018

minha sorte

Mentem que a sorte é acaso
Ou que o acaso é senhor seu.
Não vêem que temos prazo
Inadiável para termos o seu e o meu.
Que a sorte é também uma escolha
Urgente para ser aproveitada,
E não compreendida.

sábado, 10 de dezembro de 2016

A grande história de M.

M. viveu em uma cidade ribeirinha nem pequena, nem grande. Em sua infância, corria à beira daquele frondoso rio, contemplado de frente pelas casas dos ricos e pelas praças da cidade, dele separadas apenas por uma avenida. Na maior destas praças, cercada por árvores, M. percebia ao voltar da escola, havia sempre um velho sentado, apoiado em sua bengala e olhando além do rio, com a expressão de quem espera ver o sol fazer algo além de se pôr. M. estranhava: sentar àquele banco e lá estar ao fim de cada dia era um dever religioso para o velho.
Então M. cresceu com sua cidade, cujas belas casas tornaram-se prédios que pelas manhãs ensombreavam o rio e pelas tardes postavam-se ao lado do velho para aguardar o sol partir. M. tudo observava com interesse, mas sempre lhe faltava coragem para caminhar até aquele banco e ver o que apenas o velho via. E os dias passaram, por vezes ligeiros, vazios, e por vezes eternos, brilhantes – mas passavam, pois o tempo é inevitável como o próprio pôr-do-sol.
E M. passou a juventude longe da cidade natal, porque inevitavelmente teve de estudar fora, na capital, onde escolheu sua profissão, casou-se com uma moça gentil, criou seus filhos e entre seus lamentos havia o de que a tolice da juventude o impedira de finalmente testemunhar o que via aquele velho. Após isso, o sol completou muitos e muitos arcos até chegar o triste dia em que a cama de M. voltou a ter apenas um ocupante.
Passado o luto, decidiu, sob os protestos dos filhos já crescidos e estabelecidos, voltar à cidade em que sempre dormiu só. Após chegar, em sua primeira caminhada pelas ruas há muito conhecidas, viu que o lugar não era o mesmo: os automóveis, os barulhos, as pichações nos muros e os prédios cresceram e multiplicaram-se. Mas a grande praça e o rio permaneciam lá, testemunhas de M. e de sua terra.
E foi durante esse mesmo passeio que M. não acreditou em seus olhos: enquanto andava à beira do rio, viu o mesmo velho, com a mesma bengala, no mesmo banco, sob as mesmas árvores. Só o medo de M. mudara: jubiloso, apressou-se, atravessou a rua conturbada tão depressa quanto suas trêmulas pernas deixaram, e, quando já estava perto da praça, dois carros colidiram com violência suficiente para lhe chamar a atenção por alguns segundos.
Seu grande choque, porém, foi perceber que aqueles instantes de curiosidade o fizeram perder o velho de vista – no banco agora estava apenas a bengala. Não perderia a viagem; agora mais tranqüilamente, aproximou-se do banco, apoiou-se na bengala, sentou e, após descansar alguns instantes, olhou à frente para contemplar a vista. E viu o grande sol laranja pincelado por nuvens negras pintando de amarelo o azul-escuro do rio. Aquele pôr-do-sol não era tão belo quanto outros que presenciara, mas M. foi inundado de satisfação por finalmente compreender o que o velho sentia, pois viu com os seus olhos.
A partir de então, todos os dias M. ia à praça para devolver a bengala ao velho, que nunca voltou a aparecer. Isso não o incomodou, mas lhe causava um surpreendente contentamento. E assim foi até o último anoitecer, em que M. rapidamente levantou e foi para casa, sorrindo.

domingo, 7 de junho de 2015

o menino no shopping

Matias não sabia se era sortudo ou azarado. Órfão de mãe e abandonado pelo pai, viveu na rua até encontrar o Sr. Raul, homem de idade e vigia de um shopping center da imensa cidade de Nunci, numa noite escura de quinta-feira. Naquele dia, a cidade estava vazia em decorrência das comemorações pelo carnaval, que provocava êxodo massivo e dava a oportunidade a moleques de catorze anos como Matias perambularem pela cidade à procura de uma esmola ou uma alma gentil.
Quando a noite iniciava, Matias teve azar: enquanto sentava e olhava para o céu nublado, um carro passou por uma poça d’água vizinha e o ensopou. Já encharcado, jogou mais água em sua roupa, pois chorou incessantemente. Havia fugido do orfanato há quase três meses e agora estava magro como um cão faminto. Não se arrependia, pois era maltratado na instituição, nunca gostou do ambiente e se dizia que dali não saía sujeito que se preze. Só sentia falta da comida na mesa.
Nesse momento, o Sr. Raul chegou ao seu lado. Tinha mais de 70 anos e uma aparência condizente com os anos vividos, mas se movimentava com grande agilidade e força. Falou com o garoto.
-Meu querido, por que está chorando?
Matias não respondeu.
-Você está bem magro, deve estar com fome. Venha comigo pra eu te dar um sanduíche. – O velho sentiu a relutância do menino. – Tudo bem, então. Não quer um hambúrguer? Acho que mais tarde você se arrepende... Até logo!
O Sr. Raul escutou o “Ei!” após cinco passos. Não falaram nada além de um “esse” seguido de um olhar guloso e um “o que é acelga?” até Matias terminar o sanduíche. Já alimentado e confiando no homem menos porque ele o pagou um sanduíche e mais pela forma com que era tratado, o garoto pôde explicar de onde viera, como perdera a mãe, que o pai o abandonara e por que saíra da casa de órfãos. Em vinte minutos, já eram amigos. Foi aí que veio a proposta:
-Olha aqui, menino. Tá vendo aquele prédio ali? – apontou para o imenso shopping. – Eu sou vigia de lá. Toda noite trabalho da meia noite até as oito da manhã. Não posso leva-lo para casa, já crio quatro dos meus netos e minha mulher não aceitaria, mas garanto que você não fica sem teto durante a noite. E, se estiver com fome, sempre posso trazer um lanche. O que me diz?
O menino poderia ter perdido aquela chance por não haver reagido. O Sr. Raul o empurrou e o conduziu até o grande edifício branco. O velho mandou Matias ficar perto de uma grade, afastou-se alguns metros e passou muito tempo gesticulando e falando com seus colegas vigias, aparentemente os convencendo que o menino era inofensivo. Sob muita relutância, aceitaram a presença do garoto, desde que sob sua supervisão em tempo integral.
Matias não sabia que algum teto poderia ser tão alto e que tantas cores conviveriam com letras, desenhos, cartazes e placas dos formatos mais diversos. O silêncio do lugar lhe trazia uma paz que talvez nunca havia sentido até então; o eco causado por um pequeno passo fazia-lhe imaginar o barulho que predominava durante o dia, quando centenas ou milhares de pés sapateavam pelo chão, com um rumo certo ou apenas vagando em busca de um caminho ou, simplesmente, de um sorvete gelado.
A cada semana cujas noites Matias passava no shopping, crescia sua curiosidade sobre o gosto dos sorvetes. Foi aí que ele decidiu fazer uns bicos no centro da cidade durante o dia para, finalmente, poder comprar durante o dia uma daquelas maravilhosas casquinhas dos pôsteres: não eram tão grandes e majestosas como esperava, mas tinham um gosto divino. Aos poucos e com a ajuda do Sr. Raul, o moleque conseguiu roupas novas, arrumou lugar pra trabalhar passar o dia – um estacionamento de um amigo do Sr. Raul – e vinha engordando. Matias não revelava isso a ninguém, mas tentava dormir durante o dia para poder andar pelo shopping na noite que, para quase todos, era vazia e morta. No absoluto silêncio, Matias conseguia escutar tudo aquilo que pensava. Eram as melhores noites de sua vida.
Fazia mais de dois anos desde que o Sr. Raul e um encharcado Matias se encontraram na rua escura. Tudo ocorria dentro do previsto: agora matriculado numa escola, o garoto auxiliava no estacionamento durante a tarde e seguia religiosamente para o shopping às 10 da noite. Certa vez, os vigias não o deixaram entrar. Perguntou o motivo e lhe riram na cara. Dormiu na rua aquele dia.
A sequência se repetiu por mais duas noites, quando o garoto percebeu que não sabia sequer onde o Sr. Raul morava ou qualquer forma de conseguir notícias do amigo. Os vigias do shopping, que nunca gostaram da sua presença por lá, já estavam mais agressivos: não respondiam nada sobre o velho e proferiam ameaças caso houvesse insistência. O que se passou com o Sr. Raul? Por que ele nunca lhe dissera sequer onde morava? Matias se enfurecia até que o pensamento da possível morte do velho passava pela sua cabeça e lhe amolecia os nervos. Será que tinha sido novamente abandonado?
Preferiu pensar que não. Decidiu conforme certa vez já havia pensado no meio daquele salão de teto alto: só a morte o impediria de ver novamente o Sr. Raul, seja ela a morte do velho ou a própria, que extinguiria seus pensamentos e inúmeras imagens daquele senhor de andar rápido e alegre. Naquele momento, voltou a questionar se tinha sorte ou azar ao perder o amigo daquele jeito. Decidiu, então, ir à lanchonete de dois anos e pouco atrás, pediu novamente o hambúrguer com acelga, o devorou e saiu em busca de um teto para a noite. Matias escolheu ter sorte.


(Texto de julho de 2014)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Lembrete

Não vivo em tempos sombrios: há acontecimentos, pessoas e histórias terríveis ao meu redor, mas, igualmente, existe com quem vale a pena passar uma tarde, uma noite, o dia, a semana e, por que não, a vida. Há belas histórias que, futuramente, serão os exemplos perdidos de uma época gloriosa. Cabe a mim, humildemente, escrever uma delas. Enquanto existirem pessoas, haverá (e há!) quem traga luz ao próprio tempo. Por mais escuro que o meu seja, ou possa parecer, por vezes uma tarde agradável pode acender a chama que acostuma meus olhos à luz, fazendo renovar-se a esperança de, um dia, compreender por que iluminar apenas o que posso ver é vão como uma fogueira cintilante numa caverna de cegos.