terça-feira, 21 de setembro de 2010

A goleira do Gigantinho

A goleira do Gigantinho. Poucas coisas eram tão certas no futebol como o fato de que esta goleira seria amaldiçoada. Não exatamente amaldiçoada, mas enjoada, carrancuda, cabulosa. Basta assistir a todos os gols históricos do Internacional: o gol iluminado, o primeiro gol da final de 76, o gol do Dunga contra o Palmeiras, os gols contra o Libertad, o gol do Tinga... Todos no outro lado do campo. Todos na goleira do placar.

Minha teoria não explica isso por um mero acaso do futebol. Na verdade, o que acontece é que, em algum momento antes do jogo - muito provavelmente na noite anterior, já que o futebol escolheu ser brasileiro e nós deixamos tudo pra última hora -, as traves decidem de quem e quantos gols levarão. O velho jargão do futebol que diz "a bola não quer entrar" está errado por esse singelo detalhe: não é a bola, aquele objeto desleal e manipulável, que decide se vai ou não tocar as redes. É a baliza quem manda. Se ela está de mau humor e não quer tomar gol, não existe jogador capaz de contrariar sua vontade. Mas se ela está faceirinha, não tem goleiro que seja capaz de não tomar uma goleada. O placar do jogo nada mais é do que a soma dos placares que cada goleira escolhe.

O que eu notava, desde que passei a acompanhar o Inter, era a inconveniência da goleira do Gigantinho. Gol do adversário aos 49 do segundo tempo? Sempre nela. O Inter precisa de um gol faltando 2 minutos pro fim do jogo? Não nela. Onde sempre fica a torcida adversária? Atrás dela. Já a goleira do placar sempre foi só alegria. Gol de título, gol salvador, golaço, gol mil... todos lá. Além disso, atrás desta é que se colocam as principais torcidas - organizadas ou não - coloradas.

Tinha que ter uma explicação para isso. Cogitei até que a goleira do Gigantinho fosse gremista, uma infiltrada em território inimigo. Mas aí já seria demais. Talvez as duas sempre combinassem na sorte - não me pergunte como - onde seriam os gols e a coitada sempre desse azar. Ou podia ser até uma questão de carma, nunca se sabe. O fato é esse: a goleira do Gigantinho era uma chata. Isso sempre me acompanhou. Até o dia dezoito de agosto de 2010.

Intervalo de jogo. O Chivas batia o Inter em pleno Beira Rio, na final da Libertadores. O gol do inimigo, claro, ocorrera na goleira do Gigantinho. E esse era o grande problema. Não importava como os times iriam voltar a campo, se haveria alguma mudança tática radical no Colorado ou se os mexicanos iriam voltar com sete zagueiros. A verdade era que o Inter dependia somente do arbítrio de sua mais incerta aliada. Por que diabos a outra goleira, sempre fiel aos objetivos colorados, sempre paparicada, sempre exaltada, não cedeu um golzinho para o Inter? Por que tinha tudo de estar nas mãos - figurativamente falando, claro - da goleira mais cabulosa do Beira Rio?

Depois do jogo, eu entendi. Em meio às comemorações, aos foguetes e aos gritos colorados, urros orgulhosos de quem era mais uma vez dono da América, eu tive uma visão. Meio embaçada, admito, mas na qual eu parecia observar o Beira Rio mais ou menos do lugar onde eu estava - um pouco mais pra esquerda, para perto do Gigantinho. O estádio estava vazio, apenas algumas lâmpadas dos refletores acesas, o verde do campo quase absorvido pela escuridão noturna. As traves, ao invés disso, pareciam ter luz própria. Não brilhavam, mas certamente tinham um destaque no cenário. Era como estivessem se comunicando. Apesar de não ouvir nenhuma voz, ficou claro tudo o que estava posto. Toda um histórico de injustiça, de desigualdade, de tratamento diferenciado. A goleira da esquerda parecia se fazer entender, sabiamente. Era como se um filmes de gols, defesas e bolas na trave, desde as arranhadas imagens dos anos 70 até as daquele dia, fosse exibido no gramado. Transpassava-se pela película verde uma vontade de se provar, consequência de um sentimento guardado, remoído. Foi reivindicada uma redenção. E ela tinha data marcada.

Tudo ficou claro: a visão, o estádio e minhas ideias. Os três gols do Inter ocorreram na goleira do Gigantinho. Ela fizera questão do suspense ao intervalo. Fizera questão de novamente ser posta em dúvida, para que o gosto de sua apoteose fosse ainda mais saboroso. Ainda ganhara um presente da outra goleira, que sofreu um gol do Chivas ao fim do jogo. Finalmente, era ela a estrela da noite, era ela o motivo da felicidade vermelha, veio dela a razão de ser feito um carnaval em agosto.

Quando me dei por mim, estava observando a festa dos jogadores, na frente da Popular, atrás da goleira do placar. Logo olhei para o outro lado do campo, quase vazio, por alguns detalhes diferente da minha visão anterior. Lá estava a goleira do Gigantinho, novamente reluzente. Era observada, provavelmente, apenas por mim e pela outra goleira, que a encarava felizmente. A história era finalmente compensada.

Não se importava onde todos comemorariam. Não ligava se ninguém olhasse para ela. A grande verdade era que, quando todos saíssem do estádio e ele, mais uma vez, estivesse vazio e levemente iluminado, a goleira do Gigantinho poderia adormecer em paz, com uma certeza: nenhum sonho poderia ser melhor do que a realidade.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto!
    Tenho certeza que essa mística sobre as goleiras do Beira-Rio era percebida por muitos torcedores colorados. Enfim, oos 3 gols salvadores, que nos deram o Bicampeonato da América, ocorreram na tão temida e assombrosa goleira do gigantinho. Excelente texto!

    ResponderExcluir
  2. Deveras exelente texto...
    li no blog da coloradana, mas fiz questão de vir aqui parabenizar

    ResponderExcluir