A voz no beco
Tinham quinze anos quando aconteceu.
Carlos, José e Arnaldo estavam sentados numa praça da cidade, falando sobre os
assuntos que qualquer menino de quinze anos conversa – futebol, carro, mulher e
histórias inventadas ou mal contadas sobre esses temas. Olharam, os três ao
mesmo tempo, para um beco escuro de uma rua sem saída ao lado deles. De lá
vinha uma voz suave e, contraditoriamente, amedrontadora:
-José, preste atenção.
José não só prestou atenção como começou
a tremer.
-Carlos e Arnaldo, vocês também.
Arnaldo pensou até em correr e gritar
pela mãe – era o que morava mais próximo dali –, mas foi contido por Carlos:
-Psiu, fica quieto.
E ficaram. A voz prosseguiu, agora
parecendo que vinha de trás deles:
-Na rua da qual veio minha voz,
encontrarão três pequenas estátuas. Elas poderão ser muito úteis a vocês:
quando bem entenderem, basta quebrá-las que voltarão no tempo a um certo
momento desejado. Duvidam? Então por que minha voz agora vem do céu?
E vinha.
-Continuam duvidando? Então por que vão
viver isso tudo de novo?
E lá estavam eles falando da nova
namorada daquele jogador quando, subitamente, param de falar e escutam, da
mesma rua, uma voz capaz de corroer por dentro uma alma:
-José, preste atenção.
***
José
José tinha dezenove anos quando começou a
namorar Luiza, uma menina bem bonitinha em quem esteve de olho desde os
dezesseis. Todos os amigos do casal já perguntavam quando seria o casório a
partir do terceiro ano do relacionamento. Amigos só de José, entretanto,
alertavam-lhe sobre a juventude perdida:
-Zé, tomara que você goste mesmo dessa
garota, porque cê não faz ideia do
que tá perdendo...
Mas José tinha uma carta na manga: a
estatueta recebida naquela noite sombria. Sempre se perguntava quando a usaria
e, ao mesmo tempo, sentia-se seguro para fazer o que bem entendesse – ora, o pior
que lhe poderia ocorrer seria viver tudo de novo e, se tem gente que reclama
que a vida é curta, ele poderia tê-la duas vezes...
No seu sétimo ano de namoro, então, briga
pela trecentésima (sem usar hipérbole alguma) vez com Luiza. Uma ciumeira sem fim acabou com o
namoro. José chega em casa chorando e, agarrado ao copo do uísque que ganhara
de presente de um amigo que viajara ao exterior, pensou na juventude perdida. A
quantas festas não foi, quantos drinques não bebeu, quantas mulheres não
beijou... maldita Luiza! Se ele soubesse, nunca teria feito nada a seu
respeito! Que perda de tempo... Lembrava-se do mole que a Cláudia da faculdade
dava pra ele. Recordava do beijo que a Jéssica, do escritório, tentara lhe
roubar durante um churrasco. A cada chance antes perdida, crescia seu ódio por
Luiza.
Vai ao baú no qual guardou,
carinhosamente, a estátua. Ela repousava, parecida com a estatueta do Oscar e
coberta por uma fina camada de poeira, ao lado de alguns troféus de judô
conquistados na infância. José não lembrava por que, afinal, tinha deixado o
esporte. Antes que pudesse refletir sobre isso, exige-se foco para o que iria
fazer. Agarra o pequeno homem, levanta-o com o braço direito e o atira no chão.
Queria voltar para o momento no qual chamara Luiza para sair pela primeira vez.
Voltou aos seus dezenove anos. Estava
cara a cara com Luiza. Conversou tranquilamente, mas não a convidou para sair e
seguiu a vida, sem noção do que fazer e esquecendo-se de tentar descobrir por
que ele deixara o judô.
Por fim, a Cláudia da faculdade casou-se
precocemente com outro rapaz da turma e a Jéssica do escritório nunca lhe deu
bola alguma. José, de fato, aproveitou algumas festas e bebedeiras durante seus
anos dourados, dos quais prefere nem lembrar para não se acabar em tristeza e
contemplação. Aos vinte e oito anos, casou com Luiza (ela mesma). Foi pai de
dois filhos, eternamente traumatizados pela separação dos pais, ocorrida após o
flagra presenciado por José ao deparar-se com Luiza e Cláudia (aquela mesma) na cama.
Dezenove anos depois de jogar fora seus troféus de judô (“Mas pra quê eu quero essas tralhas, mulher? Manda tudo pro lixo!”, gritara para sua segunda e definitiva esposa enquanto se ocupava com temas mais importantes que ele e seu passado – na ocasião, as quartas-de-final da Copa São Paulo de Juniores), morreu sem nunca descobrir por que diabos, afinal, casara com Luiza.
Dezenove anos depois de jogar fora seus troféus de judô (“Mas pra quê eu quero essas tralhas, mulher? Manda tudo pro lixo!”, gritara para sua segunda e definitiva esposa enquanto se ocupava com temas mais importantes que ele e seu passado – na ocasião, as quartas-de-final da Copa São Paulo de Juniores), morreu sem nunca descobrir por que diabos, afinal, casara com Luiza.
***
Arnaldo
Arnaldo mudou depois do incidente na praça.
Se fora o primeiro a pensar em correr para casa após ouvir aquela voz capaz de
arranhar as entranhas enquanto causa calafrios em sequência (ele arrepiava-se
só em começar a lembrar daquele “José, preste atenção”), passou a encarar os
momentos amedrontadores com mais coragem. Ora, se podia voltar no tempo quando
bem desejasse, poderia correr riscos e desfrutar da consequente reputação de
corajoso e visionário que se configuraria.
E, de fato, Arnaldo tinha uma excelente
intuição. Recorrentemente, recebia elogios:
-Mas tu tem um instinto, viu? Benza Deus!
-Arnaldo, depois me passa o número da
bruxa que te deu essa bola de cristal que, se essa desgraçada me der uma, eu
caso com ela na hora!
Ganhou fama. Tomava posições fortes e
convictas, mesmo que nem sempre corretas. A cada erro, ponderava se devia
voltar no tempo. “Não”, pensava, “a cada dia sem voltar, é um dia a mais de
experiência. Quanto mais tempo passar, mais eu ganho aqui e mais tempo a ganhar
eu tenho lá”. Por ser corajoso, de boa intuição e de voz forte, conseguiu um
bom emprego já aos 23 anos como corretor de ações. Consolidou-se no mercado,
fundou uma escola com seu legado. Muitos anos depois, foi convidado para um
cargo executivo em uma grande empresa. Aos quarenta e cinco anos, considerava-se
feliz. Rico, bem sucedido, casado com Marta, quem conhecera ainda guriazinha e
que se tornou um mulherão – vinte e cinco anos mais nova, mas dane-se: era um
mulherão.
Quase todo dia, porém, abria uma pequena
porta localizada estrategicamente ao lado do pé direito de quem senta na sua
imensa mesa de trabalho. Imaginava o uso que poderia dar à estatueta localizada
atrás de alguns livros e que brilhava como se houvesse sido fabricada naquele
mesmo dia. Parado, punha a mão no queixo, o cotovelo no braço da cadeira e
pensava, sem progressos, no que tinha dado errado na sua vida.
Certa vez, Bentinho, seu filho, pediu um
novo videogame. Consultou uma revista
do ramo e viu que a única mudança em relação ao anterior, ganhado pelo filho há
menos de seis meses, era no design
dos botões. Negou o presente de Natal ao filho veementemente:
-Não, esse novo é a mesma coisa.
-Mas papai, o novo... – o filho nem
conseguia terminar a frase:
-Não é não, entendeu? O que tem de errado
no seu? Acha que ele foi barato? – dizia, firme como achava que deveria ser.
-Não é questão de ter algo de errado no
meu, mas é que dava pra ser melhor, pai...
Arnaldo arregalou os olhos
instantaneamente. Arrepiou-se como há tempos não fazia. Soltou um largo
sorriso: era isso.
-Então, tá, meu filho! Eu compro! - a
mudança de feição do pai deixou o menino confuso. Ora, pra quê negar o desejo
do garoto se não o veria em muito tempo? Melhor deixá-lo aproveitando alguns
minutos de júbilo, pois muito em breve voltaria a não existir.
“Era isso! Bingo!”, pensava Arnaldo
enquanto corria para seu escritório, “Não tem nada de errado, mas dá pra
melhorar! Dá pra melhorar!”. Como se houvesse voltado aos vinte e dois anos –
em verdade, estava prestes a fazê-lo –, deu um pulo na cadeira e pesquisou os
resultados da loteria daquela época. Decorou os números como se fossem fórmulas
para um exame final da faculdade: três, vinte e oito, sessenta, sessenta e
quatro, setenta e cinco, oitenta e dois. Repetiu a sequência obsessivamente por
quatro dias. No quinto, pegou a estatueta e, sem ritual algum, atirou-a no
chão.
Estava na ocasião em que havia recém
obtido o emprego como corretor. Faltavam cinco dias para a loteria. Correu,
agora com o fôlego renovado pela juventude, e entrou na primeira casa lotérica
que viu. Três, vinte e oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco,
oitenta e dois: marcou cada número com um prazer inimaginável, talvez nunca
sentido em seus quarenta e tantos anos de experiência terrena. Trabalhou tranquilamente,
do jeito de sempre, arrancando elogios e olhares de admiração. Por
coincidência, foi naquela semana que viu a pequena Marta, a quem mimou como
pôde.
Chegou o domingo: ligou a televisão e
começou a esperar pela boa nova. Via o apresentador gritar:
-A primeira bolinha, vamos lá com a primeira
bolinha... três! Número zero-três é a primeira bolinha!
Arnaldo começava a entrar em êxtase. Veio
a outra:
-E agora, hein, olha lá a segunda
sortuda... é o número três-um! Repito: trinta e um!
Arnaldo congela. Sentia uma espada
cruzando-lhe o corpo. Uma não:
-Cinquenta! Cinco-zero é o terceiro
número!
Desabou. Impotente, assistiu ao sorteio
até o fim.
Depois disso, nada lhe restou senão
tentar repetir a sua vida. Nem tentou entender o que passara, embora haja
criado o hábito de jogar na loteria os mesmos números de sempre (três, vinte e
oito, sessenta, sessenta e quatro, setenta e cinco, oitenta e dois), nunca
acertando mais que três. Com o baque, perdeu a autoconfiança. Não conseguia
repetir o pulso forte de outrora: era só mais um corretor de ações. Via Marta
crescer e não conseguia separar-se daquela que talvez fosse seu único vínculo a
uma vida passada, mas totalmente desvinculada de seu futuro. Descontrolado,
atacou a menina quando ela ainda tinha dezessete anos e, na fúria de quem nada
pôde fazer porque seu ex-sogro o interrompera violentamente, sofreu um acidente
de trânsito que lhe tirou o movimento perfeito das pernas.
Morreu velho, aos 87 anos, em uma cidade
pequena do interior, para onde se mudara com fins de iniciar uma nova vida. Foi
bem sucedido: chegou sem pernas e só saiu de lá sem vida. Por vezes, seus
filhos flagravam-no cochichando, amargurado:
-Você deveria ter seguido sua intuição...
Deveria ter seguido...
***
Carlos
Carlos ficou fascinado com o ocorrido na
praça. Voltou para casa especulando de onde aquilo vinha, por que com eles,
como o tempo poderia ser manipulado daquele jeito e se o tempo, afinal, é tão
determinante sobre as pessoas, ou, ao menos, sobre ele. Pensar nisso fazia com
que ele se sentisse extraordinariamente bem. Sentir-se bem pensando é ótimo
quando se tem que tomar decisões importantes: assim, a estatueta o acompanhava
aonde trabalhasse. Deixou a estátua já na mesa de seu primeiro estágio, sem
medo de que ela se mostrasse a um mundo que a desprezava por desconhecer o seu
poder.
Jovem, aproveitou a juventude: usou sua
força para ganhar seu espaço e sua energia para se divertir. Adulto, gozou da
maturidade: sempre sóbrio no que fazia, consolidou-se como um grande professor.
Em meio a isso tudo, encontrou uma mulher com quem valia a pena casar-se e
assim o fez. Já velho, curtiu seus últimos dias com a amada e os descendentes
de uma maneira que deveria ser regra na humanidade. Já nos seus últimos dias de
vida, entregou a estátua para o primogênito, Emerson, dizendo-lhe com um tom
rouco e cansado, mas encantadoramente forte:
-Que, ao olhar para esta estátua, você e
seus irmãos sempre se lembrem do seguinte: o maior erro que se pode cometer é
não cometer erro algum. Essa estátua é a coisa mais valiosa que eu já tive,
filho. Agora, ela é sua.
Aos noventa e três anos, faleceu da
melhor forma possível: certa noite, dormiu para não acordar mais. O único fato assustador
em relação a seu óbito foi relatado pela viúva: ela jurou que o marido dera boa
noite a si mesmo aquele dia, pois ouviu, quando ainda estava no banheiro
guardando a própria dentadura, uma voz grave, forte e amedrontadora que qualificaria
como sombria se não lhe houvesse causado uma agradável sensação de ternura:
-Boa noite, Carlos. Durma em paz.
ai meu coraçaum
ResponderExcluirVá em frente como escritor. Muito bom!
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